Autor: Márcio R. D'us
Capitulo I
Olhos de Águia
- Daqui pra frente não pode haver erros. Se não formos cuidadosos,
podemos ser pegos, ou até mesmo mortos. – os outros balançaram a cabeça. Se você os
visse mais de perto, aliás, contemplaria em seus rostos aquela jaez de confiança de
quem sabe o que está fazendo.
Saíram um a um do alçapão, anexado à parte lateral de um galpão decadente.
Numa espécie de U, o buraco apertado tinha duas aberturas, uma dava em um beco e a
outra dentro do esconderijo. Irromperam no beco desconfiados. Embrenhados no
pauperismo de vestes surradas, encardidas e puídas.
Avançaram pelas ruas costurando becos e vielas vazias. Observados pelos
casebres úmidos e espectrais, do fim de uma idade média na qual os subúrbios não
diferenciava ratos de homens. A manhã estava fresca como uma virgem, e do mar subia
uma brisa revigorante.
Chegaram juntos a uma rua próxima à feira central, ladeada por sobrados
deteriorados. Naquele ponto o movimento de transeuntes era crescente e havia diversas
ruelas em direção ao mar, antes, porém, um labirinto de lonas dispostas numa paleta de
bege, confundia as vistas dos mais circunspectos.
– Aqui nos dividimos. – Ordenou uma última vez sua trupe, sua família
esfacelada.
Como roedores, eles se dispersaram pelos becos próximos à feira e logo se
misturaram com a multidão. O líder, acompanhado de outros dois, atravessou-a a passos
rápidos. O cheiro de peixe pairava mais forte que o normal. A gritaria habitual dos
vendedores era confusa e ensurdecedora. A feira era um centro comercial onde poderia
se encontrar de tudo: Especiarias trazidas de outras terras, porcos, cabritos, galinhas,
peixes e frutos do mar. Abastecia tanto o povo da cidade quanto os navios que partiriam
ao oceano. Marujos carregavam sacas e caixotes por todos os lados exalando peixe
morto, sabe Deus se o odor provinha deles ou do que carregavam.
O cais era uma geringonça desajustada, com engrenagens que funcionavam fora
do tempo e lutavam para se fazer funcionar em meio ao caos. Com diversos navios e pequenos barcos ancorados nas docas, ondeando diante da instabilidade do mar e, com
mais homens e suas infinitas caixas.
Como dedos fincados em areias movediças, os píeres se estendiam por mais de
cem metros mar adentro. O mais antigo, de pedra, fora construído de blocos rochosos
aproveitando uma barreira de corais como alicerce. Sobre ele, um pequeno castelo
despontava como alfândega e torre de vigília.
As docas se estendiam lateralmente ao longo desses píeres. Galés de todos os
tamanhos atracavam em paralelo às plataformas, de acordo, é claro, com o humor da
maré.
Além do píer de pedra, havia mais três, tão extensos quanto, só que feitos com
toras e ripas de madeira. Perto de um deles, parados ao lado de uma fenda no chão, o
líder acompanhado dos outros dois dissimulavam, vez ou outra, olhando para cima,
onde um bando de gaivotas parecia reclamar da vida.
Do alto de um casebre, o reflexo dum espelho indicou que todos chegaram às
suas posições. Foram impelidos instantaneamente.
Desceram espremidos pelo buraco no cais, longe de olhares curiosos. Assim que
constataram que não haviam sido seguidos, como primatas, saltaram em direção ao mar
por entre as bases de sustentação da plataforma. Seguiram em direção às docas por
baixo, onde os navios estavam ancorados.
Pés, mãos e joelhos arranhados, não os impediram de chegar ao alvo, um galeão
de proa afinada. Estes monstros guerreavam pelos mares, e atravessavam continentes
com mercadorias de valor incalculável. E esse era dos grandes. Com seus quatro
mastros flutuava imponente exibindo a inscrição desgastada no casco enegrecido: La
Concepción.
Na linha junto d’agua, a galé era tomada por humo ao redor do casco. Segurando
o esporão da proa com seus braços esticados sobre a cabeça, La Bella Dulcinea nunca se
fatigava. A esposa da tripulação. Com grandes pedras cor de jade no lugar dos olhos.
Esculpida em carvalho e pintada de dourado, como uma amante estendia seu corpo por
sob toda a proa.
Cuidadosos, os homens de bordo retocavam suas cores a cada porto que
ancoravam.
Um garoto franzino arrastava uma caixa despretensiosamente entre os navios.
Com a mão que estava livre, Pierre ajeitava o lenço vermelho na cabeça que insistia em
escorregar. Muito miúdo dentro de roupas largas e surradas, estava acompanhado por
dois sujeitinhos um pouco maiores, Paulo e Estevão, que o seguiam como guarda costas, sempre a observar o entorno com ares de preocupação. Parados ao lado do
imenso galeão, direcionaram sua atenção para o casebre no porto, de onde havia vindo o
primeiro sinal.
– Ei moleques! – disse um dos marujos que trabalhava por ali e andava na
direção deles com um saco na cabeça. Pierre sentiu um calafrio subir-lhe pela espinha. –
Saiam da frente, estão no caminho!
– Temos que entregar está caixa para o Mou – disse Pierre, sem pensar.
– Não conheço nenhum Mou! Saia da frente eu já disse! – O marinheiro barbudo
e fedorento deu lhe um empurrão que graças aos perdigotos ácidos de suor quase o fez
desmaiar. Amparado pelos colegas que riam, Pierre foi sendo arrastado junto com a
caixa que segurava quase desfalecido pelo nojo. Foram para longe do monstro do mar.
Ancorada como uma irmã menor sob a sombra do galeão, encontrava-se outra
galé. Aparentemente de pesca, num tom desgastado que sugeriria um carvalho que em
algum período do espaço/tempo fora pintado de azul, com homens atarefados sobre o
convés cuidando de limpar e organizar as coisas.
Um reflexo de luz se acendeu de cima de uma das casas no porto.
– O sinal –
alertou Paulo de sobressalto, acertando a nuca do irmão com um tabefe. Os traquinas
apressadamente deixaram a caixa próxima ao barco de pesca que estava em paralelo
com o Galeão. Saíram do local rapidamente e foram para um ponto de observação.
O porto se estendia por uma boa faixa de costa. Nele havia imóveis dispostos
usados geralmente como depósito de materiais. Tanto de especiarias trazidas pelos
navios, quanto de materiais de pesca. No alto de um desses pequenos prédios estava
Anoop.
Anoop, como muitos indianos traídos pelos colonizadores, fora trazido para
servir como escravo. Lutara incansavelmente até fugir de seus senhores. Fora achado
pelo grupo desamparado, quase morto nos guetos. Era dono de uma timidez de avestruz,
mas aos poucos a convivência com o bando lhe fez aprender a língua e outras coisas.
Deitou-se no piso da laje numa parte onde não havia telhas que arranhavam e esperou.
Enxugava em vão a testa com o punho da blusa. De onde se encontrava, o cais se
estendia num arco talhado em madeira e pedra. A melodia no plano de fundo difundia-
se em notas de comandos, galhofas e grunhidos inespecíficos, com batidas ritmadas do
percussionista que controlava o instrumento do mar.
Após sinalizar para o grupo
utilizando um estilhaço de espelho, se ajeitou para apoiar o mosquete na quina elevada
da laje. Esperou o momento ideal... E quando ele chegou, contando os batimentos do coração, Anoop fixou-se no alvo.
Ele apertou o gatilho com a mesma confiança com que apertaria nos próximos
anos de sua vida. Mirou na caixa de pólvora deixada por Pierre entre os navios, e o
estrondo fez com que pássaros pousados nas lajes vizinhas saíssem em uma revoada
destrambelhada. A repentina liberação de energia teve um transtorno inigualável nas
docas. O navio de pesca teve suas velas estraçalhadas e parte de seus tripulantes feridos
se jogaram ao mar. Outros, atônitos, tentavam salvar o que podiam.
No grande galeão, todos saíram com suas armas, espadas e punhais prontos para
a batalha. Marujos temperados e cozidos em guerras por toda uma vida, demoraram a
perceber o que de fato ocorria.
Anoop escondeu a arma numa bolsa de couro, desceu as
escadas na pachorra de um jabuti e logo se misturou à multidão.
A explosão reverberou abaixo do cais atormentando as águas e os miolos. Um
dos garotos sequer notaria, não fosse a vibração das madeiras na qual estava segurando.
Mouco de nascença chamavam-no de Sordo, o Arlequim.
A vida por definição é simplesmente percebida. A dita percepção, tida através
dos sentidos, atinge diferentes níveis de graus, conforme fatores ligados: ao indivíduo,
ambientes marcantes, sabores envolventes, sons inebriantes....
Em consequência,
pessoas que são forçosamente extraídas da percepção padrão costumam ver o mundo e
suas nuances, de outra forma.
Sordo nunca havia visto as pessoas rirem tanto e demonstrarem tanta alegria
quanto naquela noite, oito verões atrás. As palhaçadas e acrobacias fascinavam-no e
grudaram em seu cérebro como piche, fazendo o crer, que aquilo era algum tipo de
certo. Daí toda fixação por arlequins. Contudo, as lembranças como num redemoinho
de cenas, pareciam confusas. Jamais havia estado tão feliz e tão triste em um período
tão curto de tempo.
Sua mãe o deixou sentado num banco observando absorto o picadeiro. Espere
aqui, querido, volto logo, ela disse, movendo os lábios caprichosamente para que ele
pudesse compreender. Foi a última vez que ele a viu.
Viveu com as pessoas do circo desde então. E por conta das perseguições da
época feita pelos religiosos, numa passagem rápida por Cádiz, mais uma vez, fora
deixado pelo caminho.
Quando os miolos voltaram para o lugar deram seguimento ao plano.
Aproximaram-se ainda mais do paredão de madeira curvado e instável e
avaliaram as bocas de fogo. Os canhões, que abririam um buraco do tamanho de porco,
ocupavam janelinhas malignas, bem acabadas e esculpidas nas bordas. Procuraram ali
uma brecha onde pudessem entrar. Se fossem maiores, com certeza o esquema seria
outro, como meninos, podiam entrar até por fendas debaixo de portas.
Quando
encontraram o local ideal, ergueram-se, espremendo-se pelo buraco, até caírem do outro
lado entre os canhões.
O porão estava repleto de esferas negras alinhadas na sua maioria em pilhas com
tamanhos variados. Levantaram um nevoeiro de fuligem ao cair e o cheiro de pólvora
fez coçar o nariz e arder os olhos. Os invasores se aproveitaram de sua agilidade e se
esgueiraram pelos cantos, assim como faziam os roedores furtivos. Podiam ouvir a
agitação no convés, o que lhes causou certo temor, suores e palpitações.
Cruzaram toda a enorme casa de armas e atravessaram por um portal onde havia
algumas redes, cordas penduradas e materiais para manutenção do navio. Tudo era
muito sujo, úmido e cheirava a mofo. As câmaras pareciam que não tinham fim.
Carniças de animais dependuradas, cabras e porcos dentro de currais improvisados...
Estoque que causaria inveja a qualquer intestino de baleia com um pouquinho de
consciência.
O estômago de Baú deu voltas ao sentir a fragrância de algum animal morto
havia tempos. Por vezes, segurou a ânsia. O garoto na verdade chamava-se Rico, tinha
esse apelido não só pelo fato de ser gordo, mas principalmente por guardar seus
tesouros dentro das calças para comê-los escondido dos outros. Era um dos homens de
confiança e, apesar de sua pouca agilidade comparada aos demais, possuía a força de
um adulto.
Os três avistaram uma escada e por ela subiram velozes. Baú e Sordo iam atrás,
o outro andava à frente como se soubesse o local exato para o arremate. Atravessaram
mais algumas câmaras quando uma voz rouca fez a espinha dos invasores gelar.
– Quem são vocês?
O dono da voz era um velho magricela e salivante. De cara perceberam que
estava bêbado. Não havia nenhum dente na boca do ser ébrio mumificado. E um dos
olhos estava tapado com uma faixa de tecido que, pelo aspecto, devia estar ali a
milhares de anos.
– Os malditos piratas de Ben Hedt! Então vocês voltaram? Pelo cheiro de bosta
pude perceber...[soluço]. Sabia que regressariam atrás da minha alma. – Cada palavra vinha acompanhada de uma enxurrada de cuspo. – Estou preparado para batalha, venham, venham se houver um pouco de coragem nestas carcaças! – O velho tirou com dificuldade de dentro das calças apenas a empunhadura de uma espada.
Os garotos se olharam confusos com aquela cena bizarra, não entenderam o que o velho queria dizer com as ameaças. Nem o que poderia fazer com a espada invisível.
Demonstraram certa impaciência, e o velhote fora derrubado com um pedaço de madeira que estava caído no chão. Um arremesso certeiro no meio da testa e com força suficiente para abatê-lo. O homem, que já não tinha lá muita vitalidade nem equilíbrio, estatelou-se por cima de um monte de quinquilharias.
Passado o susto, avançaram pelas entranhas do navio. Indo no sentido da popa alcançaram uma porta vermelha. Na fronte encaixada uma pequena caveira dourada e ameaçadora, mordendo uma alça da mesma cor.
– É aqui. Sejam rápidos.
*
No cais a confusão era absurda. O incêndio no barco de pesca se alastrara, atingindo as velas do galeão. Os marujos traziam água do mar em velhos baldes de madeira. Trabalhavam coletivamente, porém o desespero tomara conta de todos. Do porto, trouxeram uma espécie de bomba d’água. Dois homens bombeavam enquanto outro posicionava o jato em direção ao barco.
Demonstraram certa impaciência, e o velhote fora derrubado com um pedaço de madeira que estava caído no chão. Um arremesso certeiro no meio da testa e com força suficiente para abatê-lo. O homem, que já não tinha lá muita vitalidade nem equilíbrio, estatelou-se por cima de um monte de quinquilharias.
Passado o susto, avançaram pelas entranhas do navio. Indo no sentido da popa alcançaram uma porta vermelha. Na fronte encaixada uma pequena caveira dourada e ameaçadora, mordendo uma alça da mesma cor.
– É aqui. Sejam rápidos.
*
No cais a confusão era absurda. O incêndio no barco de pesca se alastrara, atingindo as velas do galeão. Os marujos traziam água do mar em velhos baldes de madeira. Trabalhavam coletivamente, porém o desespero tomara conta de todos. Do porto, trouxeram uma espécie de bomba d’água. Dois homens bombeavam enquanto outro posicionava o jato em direção ao barco.
– NAS VELAS! APAGUEM O FOGO DAS VELAS! – Gritavam alguns dos marujos do galeão.
A fumaça negra cortinava o céu, avançando sobre o azul celeste numa carreata
sombria pelo firmamento. Os circulantes do porto assistiam espantados a correria
desenfreada dos que temiam ver suas galés virarem carvão.
Três sujeitinhos alheios ao incêndio, empurravam e empilhavam caixotes em
torno uma abertura para os coletores subterrâneos abaixo do cais.
– Minha mão seu filho de uma porca manca e prenha, você quase a arrancou! –
Exclamou Galgo, o mais alto entre todos, apesar de ter os mesmos catorze anos da
maioria, estapeando a cabeça do parceiro mandando a boina dele para longe por ter
soltado o caixote antes da hora.... Sendo muito comprido, Galgo, não tinha muita postura e andava meio curvado. Os cabelos escuros, curtos e lisos eram daquele tipo que pareciam lambidos na cabeça. – Quem mandou ser uma mula desengonçada de merda – retrucou Silas (Fumaça) ao passo que buscava seu chapéu e o vestia, abaixando o amontoado de seu cabelo esvoaçado que lhe presenteou a alcunha. Herdado do pai, pelo menos era o que a velha escrava com quem cresceu dizia: “sua mãe era uma nobre vadia que adorava um bom é belo preto”. - EI! – Exclamaram os dois. Num golpe rápido de braços abertos, Aureliano o mais forte de todos do bando, atingiu-os com a palma das mãos. O gigante de poucas palavras. Grandão para os demais. Possuía cabelos castanhos, pele bronzeada e exibia no corpo diversas cicatrizes. - Já acabamos idiotas – disse Aureliano como se nada tivesse acontecido. Se virou na direção das docas e da mancha negra que se esvaia do céu: – espero que todos tenham se saído bem. Pierre, Paulo e Estevão e o indiano Anoop, chegaram tranqüilos e praticamente juntos no local do porto entre dois armazéns onde ficava o bueiro vigiado por Aureliano e os outros. – Então, como estamos? – perguntou Pierre a Silas.
– Eles estão atrasados.
O fogo começava a ser controlado, apesar de ter destruído boa parte da
embarcação de pesca. O trabalho em equipe e a experiência dos marujos e pescadores
fizeram a diferença. No galeão, apenas algumas velas foram queimadas e o costado
estava quente, mas aparentemente intacto.
– Stork! – disse o capitão do La Concepción. – Verifique o navio, traga também
os documentos do alcaide que estão no meu compartimento e dê uma olhada no interior
para checar se há avarias.
O marujo atendendo o comando desceu ligeiro pela escada do
convés. O cheiro de queimado penetrara na embarcação, junto com um pouco de
fumaça que era abanada por Stork sem muito sucesso. Entrou na saleta e em instantes
voltou correndo desembestado e ofegante:
– CAPITÃO! CAPITÃO! – bradou Stork, que voltava branco como um
anêmico.
– O navio, capitão, o navio...!
– O que tem o navio? – o homem paralisou. – Diga infeliz!
– O navio... fo, foi... roubado! Foi roubado, capitão!
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