A floresta escura estava silenciosa. Os animais haviam a
abandonado, assustados com o grito de ódio. Os pássaros voaram de seus ninhos
deixando ovos e filhotes, temendo tanto por suas vidas que não se preocuparam
com as crias. Coelhos e raposas correram juntos para se salvarem daquele grito
terrível que não conseguiam reconhecer, que era tão afastado de sua natureza.
Traçando um círculo a partir de onde os animais começaram a parar sua fuga,
sabia-se que o centro seria o lugar onde um elfo, de espada na mão coberta de
sangue e cabelos esverdeados tapando o rosto, estava ajoelhado.
Enfiava
uma adaga na terra e gritava vários nomes de heróis e deuses antigos de seu
povo. Passou por vários, entidades esquecidas ou divindades menores que já
haviam caído perante outros poderes. Só por um deles ele não clamava, sua Mãe e
Senhora, a Dama que criara sua raça.
Ao lado
dele, quatro corpos estavam caídos. Eram todos seus amigos que haviam se
juntado a ele nessa empreitada. Todos o seguiram tentando convencê-lo a parar
com aquela idéia. Aqueles a quem procurava não eram nada mais do que uma lenda.
Outros diziam que era a escória de uma raça amargurada. Esses faleceram um a um
sob sua espada por desafiarem sua obsessão.
Ainion
das Antigas Noites de Bruma, elfo guerreiro, capitão de infantaria, passara os
últimos anos lutando para que sua alma não morresse. Ele a sentiu definhando
pouco a pouco, falecendo ainda que seu corpo longevo se mantivesse firme,
levantando espada para arrancar sangue de monstros em toda espécie de
aventuras.
Enchera-se
de tesouros. Tinha anéis mágicos nos dedos, uma armadura que impedia que
qualquer flecha o acertasse, um colar que o protegia contra o fogo, uma espada
que cortava o aço, tanto dinheiro que comprara seu próprio grupo de
mercenários, com o qual adquirira ainda mais riquezas. Nada disso servira para
preencher sua alma.
Foi com
admiração que percebeu o prazer ao cortar a carne daqueles humanos caídos a seu
lado, seus antigos amigos de aventura que resolveram acompanhá-lo naquela
empreitada. Aquilo só o fez perceber que estivera certo em ir até ali. O
descanso de sua alma élfica estava naquela floresta.
-
Querda sleerien farsh – disse. “Que a morte seja breve e eterna”, falava em um
ditado para a alma élfica.
- Canh
triani lus malari – completou alguém, que agora colocava a mão em seu ombro.
“Para que nenhum deus nos culpe de falta nobreza”, dizia o restante do ditado.
Ainion
fincou de vez a faca no chão e olhou para as duas figuras silenciosas que
estava atrás dele. Um era Alyan nih Narceliene, outro elfo guerreiro que ele
conhecia desde os tempos do império, antes da queda que destruíra a alma de
Ainion. A elfa que o seguia era a sacerdotisa Marwen nih Sarntir, serva da
deusa cujo nome Ainion não pronunciava.
- Você
matou amigos, Ainion – disse Alyan, agachando-se ao lado do amigo.
Lágrimas
desceram pelo rosto do líder mercenário.
- Eles
não acreditavam.
- Nem
precisavam. Vieram para salvá-lo dessa crença maldita.
- Vocês
só estão vivos porque acreditam que é verdade.
-
Acreditamos e tememos – disse Alyan, olhando em volta.
- Não
tememos... Desprezamos – corrigiu Marwen.
Alyan
ajudou o amigo a se levantar. Olhou para a face triste. As lágrimas escorriam
pela cicatriz na bochecha esquerda. Entregou-lhe uma fita marrom bordada com
frases de glória.
- Não
tenho mais orgulho – disse Ainion.
- Creia
e você terá – falou Marwen, adiantando-se. Tomou cuidado para não pisar no
sangue dos humanos.
- Um
elfo perece sem seu orgulho e sua morte não se torna breve nem eterna – falou
Ainion, recitando os ensinamentos religiosos pelos quais passara na infância.
- O
orgulho vem da deusa, não de você, pois o seu sangue vem do ventre dela. Seu
espírito vem da benção dela. Venha, eu vou purificá-lo – disse ela, colocando
as mãos sobre o peito dele.
- Não
estou arrependido de tê-los matado. Não posso ser purificado.
Marwen
passou por ele, retirando a fita bordada de suas mãos. Prendeu os cabelos do
guerreiro após retirar algumas folhas secas. Notou um pouco de sangue
coagulado, mas cuidaria daquilo depois.
Alyan
segurou a mão do amigo.
- Não
há nada nessa mata, meu caro. Nada...
- Há
sim. Aqui há algo que não descansa, cuja morte não foi breve e nem eterna. Eu
posso sentir.
- Não
há – insistiu Alyan.
- Há
sim e eles observam junto ao sofrimento dessa alma ignóbil.
Marwen
se colocou diante dele mais uma vez. Deu-lhe um beijo na bochecha e sentiu a
lágrima quente que escorria.
- Você
está apenas desnorteado, Ainion. Pense consigo mesmo e em breve a doçura de sua
alma o levará ao arrependimento. Você sentirá misericórdia dessas criaturas,
mesmo elas sendo inferiores.
Ainion
baixou a cabeça. Marwen estava para levantá-la quando a temperatura na floresta
caiu repentinamente. Alguma coisa gritou com uma voz estridente.
-
Misericórdia é tudo o que eu quero!
Era um
grito doloroso que feriu os corações dos elfos. Era como vidro sendo arranhado.
Sacaram suas espadas longas e olharam em volta. Só viram uma escuridão densa
que foi se afinando aos poucos, até formar o vestido glamoroso de uma criatura
que se sentava em um galho. A saia dela descia pelo tronco. Tinha a face pálida
e triste, as orelhas pontudas de um elfo e o olhar desesperado de alguém que
encontrou a morte e não sabe como reagir. Não sabe que deve seguir adiante.
- Ela
existe! A banshee está aqui! – gritou Ainion, olhando em volta, procurando por
“eles”.
-
Criatura patética! – gritou Marwen, adiantando-se. – Que Nossa Mãe Gloriosa lhe
dê paz por seus pecados e a arraste para o domínio em que será purificada.
A
criatura riu amargurada e saltou da árvore, voando na direção deles. Marwen
continuou imóvel, levantando um símbolo sagrado. A banshee passou por ela.
Ainion e Alyef saltaram, escapando de garras fantasmagóricas. Marwen virou-se
para procurar a criatura. Ela sumira.
- Venha
receber sua purificação!
- Não!
– respondeu a voz agonizante.
- Ela
quer ou não quer ser salva? – perguntou Alyef.
- A dor
dela impede que aceite. Ela só consegue pedir o que ninguém pode dar. Se eu a
ofereço a salvação, ela nega e passa a me odiar – respondeu Marwen.
As
garras da criatura seguraram o pé de Alyef de repente. Agora ela vinha do solo.
Subiu como um raio levando o elfo. Marwen orou com fervor e um raio atingiu a
banshee. Ela soltou o elfo, que caiu e se levantou rapidamente com a mão no
ombro.
Ainion
procurava o fantasma élfico. Estava com a espada meramente em posição de
defesa. A banshee agora voava no alto esfregando o rosto e gritando.
- Ela
vai gritar – disse Marwen, orando.
A
criatura abriu a boca de um modo que um mortal não conseguiria. Saiu de dentro
dela um ar de outro mundo, repleto de dor e morte, carregando o som da
angústia. Os elfos sentiram aquele brado de morte como espadas atravessando
seus espíritos e os fazendo se lembrar de suas dores. Marwen se manteve de pé
protegida por sua deusa. Alyef caiu de joelhos lívido, enquanto Ainion chorou,
apenas chorou.
Então a banshee desceu com as garras apontando para o
pescoço de Marwen. Ela preparou a espada para golpear, mas Ainion foi mais
rápido. Saltou e interceptou o fantasma. Sua lâmina mágica, que cortava aço,
atravessou a inimiga com um brilho que separou as trevas que compunham aquele
ser. A banshee deu seu último gemido e desapareceu. As trevas do mundo
retomaram sua essência assim como a terra exige de volta a carne de um mortal.
Ainion ficou parado olhando em volta. Marwen abaixou-se para
ver Alyef e rezou para a deusa para que ele melhorasse.
- Ele não está bem. Minha magia pode ajudá-lo, mas o
espírito dele está enfraquecido.
- Se o espírito de um elfo se enfraquece, só seu sangue pode
fortalecê-lo – disse outra voz que vinha das trevas como a da banshee, só que
essa tinha o vigor dos vivos e a vontade férrea dos imortais.
Um elfo surgiu da escuridão da noite. Usava um manto que
cobria todo o corpo. Portava uma tiara dourada com uma pedra negra no centro.
Seus cabelos eram escuros como as entranhas de um demônio e os olhos eram o
espelho negro do ódio.
- Shimay! – gritou Marwen, mal acreditando no que via. Era a
primeira vez que estava diante de um. Era a primeira vez que realmente levava a
sério aquela lenda maldita.
Ainion olhou para o recém-chegado com a primeira fagulha de
esperança que já tivera em quase duas décadas. Andou até ele, fincou sua espada
no chão e se ajoelhou.
- Salve-me, pois eu não tenho mais orgulho do meu sangue,
nem me lembro mais de minha linhagem.
- Afaste-se dele, Ainion! – gritou Marwen, se adiantando com
a espada na mão.
- Só tenho palavras como armas, sacerdotisa moribunda – disse
o elfo negro, andando até ficar ao alcance da espada dela e com a oportunidade
de tocar Ainion. Encostou um dedo nele e então recitou toda a linhagem, dos
seus pais, aos pais dos seus pais e a seus antepassados que haviam pisado em
seu continente.
Ainion sorriu e chorou.
- Me dê a glória deles – disse.
- Não posso lhe dar o que você já carrega. Está no seu
sangue – disse o elfo negro.
- Não! Está no seu espírito. A Deusa lhe deu e está junto
dele!
- A Moribunda não dá nada há muito tempo, mas nos faz
acreditar que o que é inerentemente nosso é presente dela – falou o elfo negro,
paciente.
Marwen queria atacá-lo, porém sentiu que fazê-lo seria o
mesmo que dar crédito para as ações de Ainion. Seria mais combustível para o
que o shimay dizia.
- Fortaleça minha alma – pediu Ainion. – Eu perdi família,
perdi um império. Um elfo não é nada sem o orgulho de seus parentes ou o que
seus antepassados construíram. Minha alma se torna mais bárbara, mais...
humana... a cada dia que passa... Parece que tudo vai mudar de um dia para o
outro... dia após dia.
- O mundo muda, mas os elfos ficam, Ainion – disse Marwen. –
O mundo muda, mas nossa graça se mantém aqui ou junto à deusa, pois tudo aqui
acaba, mas o reino dela é eterno.
- Nossas vidas acabam, sacerdotisa moribunda. Nossa cultura
e glória continuam. Esse é o propósito. Ou isso, ou seria melhor todos vocês
passarem para junto dela logo.
Segurou a face de Ainion.
- Quer vir comigo?
Ele chorou e disse que sim. O elfo negro se ajoelhou diante
dele e o abraçou. Marwen quis matar os dois, porém não podia atacar. Não deu
atenção para o elfo negro, mas apenas para a alma de Ainion que era seu único
propósito ali.
- Você nunca mais se ajoelhará a não ser para abraçar outro
elfo que estará de joelhos para você também. O que tem a fazer agora, é ter o
sangue de um dos Venesse... que os fracassados sucumbam – falou ele. Retirou
uma adaga de dentro do manto e enfiou-a no coração de Ainion. Levantou-se e se
afastou. – Cada um sabe em seu coração o que deve ser feito. Que a agonia
escorra com seu sangue.
- Vai me matar também, elfo negro? Quer a batalha
derradeira? – gritou Marwen.
Ela se adiantou com a espada na mão. Apontou-a para o elfo
negro.
- Você
matou quantos de nós?
-
Vários. O primeiro foi aqui, quando minhas mãos ainda tremiam e eu não era mais
do que um agricultor sem terras para arar e que chorava por perder tudo o que
tinha. Foi quando minhas cicatrizes ainda ardiam e um pedaço de metal que os
goblinóides enfiaram em mim ainda ardia dentro de minha barriga. Eu matei minha
senhora ali. Eu a servia carregando suas coisas com essas mãos feitas para arar
a terra. Quando ela chorava para a Deusa e percebi que eu precisava mais do
abraço daqueles que sofriam comigo dessa divindade – contou o elfo negro, olhando
distraído para onde estavam os corpos dos humanos.
Marwen
ouviu um murmúrio repentino. Olhou para trás para ver Ainion diante de Alyef. O
guerreiro estava com a faca que deixara fincada anteriormente no chão. Sangue
escorria de seu peito quando ele enfiou a lâmina no coração do elfo ajoelhado.
- Um
coração destruído para a salvação de uma fagulha de esperança – disse Ainion.
Alyef
segurou a mão do amigo, sentido o próprio sangue brotar. Viu o ferimento no
corpo de Ainion se fechando. Seus cabelos começaram a escurecer, assim como
seus olhos. Arrancou a faca e andou até ficar ao lado do elfo negro.
Marwen olhava estarrecida. Correu até Alyef para invocar sua
deusa e pedir a cura do colega.
- Não há magia que possa curá-lo. Sugiro que vá embora elfa.
Ela viu que não conseguia fechar a ferida, por mais que
rezasse. Ergueu-se furiosa, com a espada nas mãos.
- Não vai querer me matar?
O elfo negro sorriu.
- Não. Se Ainion quiser, ele pode fazê-lo, mas nós só
matamos vocês quando precisamos nos aliviar ou quando já estão perdidos. Vá
embora elfa, antes que seu amigo desperte...
- O quê?
Ela ouviu os gemidos. Ouviu o vento mórbido que passava pelo
corpo de Alyef e sentiu a raiva dele ao ter falhado com Ainion, a raiva por não
ter sobrevivido ao tentar provar o erro do amigo. Havia angústia demais embaixo
da fé daquele elfo. E todo aquele fracasso havia acabado de tocar sua alma
quando seu amigo finalmente se rendeu a escuridão e passou para aquele lado
extinguindo a luz no coração de Alyef.
- Banshee... – disse ela chorando.
O elfo negro e Ainion deram-lhe as costas e andaram para as
trevas.
- Eu voltarei para caçá-lo, elfo negro.
- Espero que sim, sacerdotisa moribunda.
- Eu sei qual sua tática e como seu ritual funciona.
- Não saberá mais – disse ele, desaparecendo nas trevas. E
ela não soube mais assim que deu o primeiro passo rumo a sua vingança.