quarta-feira, 15 de dezembro de 2010

Hayabusa O ronin, Capítulo II

Autor: Joao Ricardo Marques
Tamura, 10 anos atrás
Próximo ao Portão da Harmonia Dourada (leste) do Palácio.

As duas crianças se esgueiravam por qualquer pedaço de construção que pudesse ser proteção para a chuva que aos poucos aumentava. Sabiam  que ela só aumentaria e que a qualquer momento nem mesmo as marquises poderiam impedir que eles mesmos se transformassem em possas de gosma sangrenta.
Anjih vasculhava o caminho a procura de outros perigos e tinha a certeza de que olhos os espreitavam. Dezenas de pessoas corriam para todas as direções, gritando, chorando e implorando por perdão...
Como se alguém pudesse ajudar...
Mas os olhos que Anjih sentia nele não tinham nada de humano... Nem de medo. Eram olhos de criaturas que ele via apenas com o canto dos olhos, como vultos que se moviam sempre quando não se estava olhando e que quando se procurava não estava lá.
Mas estavam sim!
Pessoas caiam aqui e ali e em seus corpos inertes percebiam-se marcas que não poderiam ter sido feitas pela chuva de sangue. Eram marcas de instrumentos cortantes, garras e presas. Gargantas cortadas, corações fora dos corpos. Órgãos espalhados sem que se pudesse saber quem eram os seus donos.
Mas não se via quem ou o que estava matando e mutilando daquela forma. Só se ouviam os gritos entrecortados e sentiam-se as presenças. Seja lá o que fossem, estavam em grande número e aumentavam à medida que o céu ficava mais e mais cor de sangue.
A Guarda Celestial tinha sido dividida em dois grandes grupamentos. Um tentaria organizar os cidadãos e trazê-los, seguindo as ordens do Imperador, para dentro dos limites estabelecidos das ruas que ficavam próximas à entrada Sul do Palácio. Seja lá o que acontecesse, o máximo de pessoas deveria estar no local combinado até o pôr do sol. Quem não estivesse lá... Ninguém sabia o que aconteceria. Esse Grupamento era liderado pelo Comandante Yoshi, pai de Anjih e Ti-Neh.
O outro grupamento, liderado pelo Capitão Toranaga estaria encarregado de proteger os que chegassem ao palácio e o próprio Imperador. Seja lá o que fosse ocorrer, os magos do Imperador e a própria Figura de Jade estavam reunidos a portas fechadas com ordem de não serem interrompidos por nada. Um enorme encanto estava sendo conjurado.
Em cada um dos Pontos cardeais havia um Portão que dava passagem pelas muralhas com dezenas de metros de altura e outras dezenas de largura. Os portões eram: Portão da Paz Azul, ao Norte; Portão do Amor Imperial ao Sul; Portão da Coragem Escarlate ao Oeste e Portão da Harmonia Dourada a Leste. Esse último era onde as duas crianças estavam no momento.
As duas crianças estavam aos pés das muralhas. Por sobre elas, sentinelas montariam guarda, abrigados da melhor forma possível, sob os telhados das guaritas. Por toda extensão da muralha (e ela era gigantesca, sendo considerada por todos os eruditos e estudiosos, a maior muralha de todo o reinado) havia sentinelas. Dizia-se que nenhuma força de Arton seria capaz de Invadir a morada do Imperador.
O que era verdade até aquele momento. Não se sabia, no entanto, o quanto esse momento duraria, mesmo o custo para isso tendo sido muito alto.
Os restos de soldados atestavam isso. Cada mancha de sangue indicava o local onde alguém morrera, e havia milhares delas. Pedaços dos muros começavam a despencar, trazendo com eles corpos e restos de soldados.
Entre um e outro os dois jovens corriam, Deveriam ainda percorrer parte um quarto dos muros e como o que quer que tenha matado os soldados não haviam conseguido abrir os portões, não havia ainda passagem para entrarem, além dos quatro portões.
Aqueles homens haviam morrido para cumprir a promessa de não permitir que nada e nem ninguém que não fosse tamuraniano entrasse... Se o amontoado de corpos em pedaços ao redor da muraria não era maior, devia-se ao sacrifício daqueles mortos que caiam junto com pedaços dos muros. Meio carcomidos e derretidos, meio devorados violentamente mortos, os guardas resistiram até o fim.
Anjih continuava a ver, aqui e ali, por sob a sacada dos muros, o que oferecia alguma proteção contra a chuva, coisas que não sabia o que eram. Pareciam mortas... Mas presa em quase cada uma delas havia um pedaço de tamuraniano morto. Algumas estavam com flechas encravadas e com cortes feitos por espadas e machados, mas ainda se moviam e espreitavam.
Eram parecidos com insetos... Mas não eram insetos. Suas imagens tremeluziam e o espaço, ao redor, parecia embaçar. Mesmo entre os que estavam mortos, alguns ainda se mexiam, em espasmos, tentando ainda alcançar os dois irmãos que corriam, em sua sede de matar-mutilar-cortar-furar-derreter-devorar.
Alguns pareciam arqueiros, outros tinham garras que mais pareciam lâminas. Outros eram grandes como cavalos e de suas mandíbulas escorria um líquido esverdeado que à medida que caia, fazia buraco onde tocava.
Eram eles os culpados pela chacina... Mas por que?
Percebendo que Ti-Neh estava entrando em um estado de pânico que logo a impediria de continuar correndo, Anjih arrancou um pedaço de seu quimono e amarrou nos olhos de sua irmã.
-- Ouça, minha pequenina, eu quero que você seja corajosa agora, certo? Eu quero que você feche os olhos com força e só abra quando eu tirar a venda. O que eu mandar você fazer, você fará, certo?
-- Mas Anjih, -- ela estava chorando baixinho... Seus olhos arregalados só diziam "medo" -- e como é que eu vou correr?
-- Não se preocupe, minha linda... Eu carrego você.
Amarrou com um laço delicado, mas forte, a venda improvisada na irmã e com um pequeno esforço a ergueu sobre o ombro direito. Com o que restara de sua túnica do kimono a cobriu para que tivesse um mínimo de proteção. Seu próprio tronco ficaria desprotegido e os efeitos já podiam ser sentidos na pele que se avermelhava.
Assim preparado, Anjih correu. Correu como nunca havia corrido na vida...


Malpetryn, época atual, a dois dias da Capital do Reino.

Hayabusa cavalgava em um trote rápido o suficiente para chegar logo à Estalagem. O comerciante que ele encontrou há algumas horas disse que seguindo a estrada encontraria hospedagem e uma boa lareira para descansar.
Carregava apenas o essencial para a sua missão. Uma muda de roupas, mantimentos para dois dias, água, uma pederneira, uma pequena panela para preparar qualquer coisa que precisasse para comer. Levava o seu arco, preso na sela junto com a aljava com trinta flechas. Presa a sua cintura as bainhas de Pequena Estrela, sua Wakisachi, e de Sol Poente, sua Katana. Suas espadas eram o que tinha de mais precioso. Herança de seu pai, que as deixara com Toranaga para que fossem ofertadas a seu filho quando este fosse merecedor.
Era um dos costumes que ainda mantinham os Tamuranianos. Relíquias de família eram passadas a uma espécie de padrinho que as guardava até que o herdeiro fosse maior de idade ou que se mostrasse merecedor. Era uma honra ser o padrinho de armas de um guerreiro e Toranaga aceitou com orgulho a incumbência que Yoshi lhe dera, mesmo que, na época, houvesse sentido vontade de morrer o invés de aceitar a incumbência.
Hayabusa cuidava de suas espadas como se fossem vivas. Cada um de seus ancestrais primogênitos, numa linha de pelo menos 800 anos, havia herdado e usado aquelas armas. E ele podia sentir que haviam deixado parte de sua essência nas lâminas. Quando se concentrava em meditação podia ouvir sussurros que o aconselhavam. E quando entrava em combate, sugestões e movimentos brotavam das relíquias.
Era como se, de alguma forma, tivessem vida própria e quisessem o bem do portador delas. Enquanto cavalgava, Hayabusa alisava levemente os cabos de Pequena Estrela e Sol Poente. Haviam passado por muita coisa juntos e ele esperava que um dia se tornasse merecedor de ter um filho a quem passaria as delegaria o porte das lâminas.
O sol já iria se pôr. O dia parecia estar no seu último quarto de hora e Hayabusa não via sem sinal da estalagem. Não queria cansar o animal e não via qualquer motivo para correr demais. Se não encontrasse hospedagem antes de anoitecer, dormiria ao relento como já fizera tantas vezes. A noite prometia ser clara e calma.
De qualquer forma a encontraria amanhã.
Quando percebeu que a noite já chegara e que a lua já havia aparecido, resolveu apear e montar acampamento. Juntou alguns gravetos que encontrou próximos a onde estava e com a pederneira fez uma fogueira.
O kimono de viagem que usava era em tons de cinza e, mesclados a ele, pedaços de armaduras tamuranianas faziam às vezes de proteção. Nunca gostou de se sentir preso... Talvez por isso nunca usasse armaduras completas. Usava pedaços aqui e ali para ter mobilidade suficiente para agir, tendo alguma proteção.
Seus Tabi, calçados especiais para viagens, estavam secos e confortáveis mesmo depois de um dia de cavalgada. Mesmo assim os retirou, colocando próximos à fogueira para que se esquentassem. Colocou no lugar deles uma espécie de meia forrada e com solado, especial para dormir e, em caso de necessidade, levantar rápido e continuar a viagem.
Comeu parte do peixe seco que trouxera como mantimentos e experimentou mais um pedaço de Gorad. A guloseima era realmente gostosa e se mostrara muito nutritiva. Com apenas alguns pedaços de peixe e algumas barras de Gorad, conseguiu chegar até ali, em sua jornada, parando apenas para dormir. Agradeceria a sugestão e recomendaria a Toranaga-sama mais daqueles alimentos quando voltasse a Ni-Tamura.
E, se tudo desse certo, com a missão cumprida.
Hayabusa sempre se orgulhou de ter completado todas as suas missões, fossem quais fossem os problemas. Desde que se tornara Ronin, após a chegada em Valkaria, na fuga dos escravistas e entrar para o serviço da Milícia Nitamuraniana, sob o comando de Toranaga, era uma das poucas coisas das quais poderia se orgulhar. "A oito anos, durante uma feira, a qual tinha insistido em ir com Ti-Neh... quando tiveram seu dinheiro roubado... por que tinha que ter bancado o 'samurai corajoso'?".
Balançou a cabeça, afastando as lembranças. Não era hora de lembranças ruins. Deveria descansar e levantar cedo para reiniciar a viagem. Tudo prometia um dia de sol e com poucas nuvens. Como se isso importasse alguma coisa para que a missão fosse completada.
Quando se preparava para se enrolar no cobertor de viagem, o som do pio de uma coruja chamou sua atenção. Era algo comum num lugar ermo como aquele... Mas havia algo de estranho que o samurai não conseguia identificar... Um detalhe que ainda não percebera...
Logo após a coruja, um outro pio de seguiu. Era o de um Canário. Após o canário, um Cardeal trinou ao ar com seu canto belo e melodioso. Parecia mesmo que os pássaros estavam se comunicando. Seus sentidos, então ficaram em alerta.
Uma das coisas de que se lembrava na missão em Malpetryn, no ano anterior, era da beleza de um pássaro de corpo preto, peito branco e cabeça vermelha. Seu canto era lindo e, por hábito, Hayabusa havia decorado o seu som.
Ao indagar sobre o pássaro com o proprietário, este respondeu:
-- Este é um Cardeal. O nome significa "cabeça de rei" em um idioma bárbaro. Dizem que os outros pássaros param de cantar ao ouvir o seu rei.
-- E onde o senhor o apanhou? -- perguntou Hayabusa, fascinado.
-- Eu comprei de um vendedor na feira, a uns três meses. Eles vieram da União Púrpura. Infelizmente não existem Cardeais em Petrynia.

3 comentários:

  1. Fernando, o conto esta muito bom, real mente bem feito e com um sequenciamento de agradar qualquer leitor. Sobre o post dos Prinnies(se não se importa que eu comente aqui) eu fiz primeiro sem pensar em Arton, mas depois coloquei um pequeno adendo mesmo.
    Abraço e bom trabalho!

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  2. Então, o nome do pai dos personagem é o nome do dinossauro do Mario Bros?

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