quinta-feira, 19 de janeiro de 2023

Quem manda no jogo? Caso de Dungeons and Dragons evidencia falha de entendimento sobre práticas de consumo e o que as possibilita - estadão

Lucas Busani Xavier, Graduado e Mestrando em Administração de Empresas pela FGV EAESP, estuda consumo de videogames e socio-materialidade | Twitter: @BusaniLucas

Resumo: a empresa dona do jogo de RPG de mesa Dungeons and Dragons teve sua nova licença de jogo vazada. A atualização buscava controlar e limitar as criações derivadas a partir do jogo base. Como toda a cultura de consumo desse tipo de jogo é construída a partir de práticas cocriativas, possibilitada pela abertura da licença anterior, houve muita revolta da comunidade. O episódio serve como estudo de caso rico para que possamos entender melhor como práticas podem ser fomentadas e destruídas a partir do modelo de licenciamento dentro de uma comunidade de consumo.

Nesse começo de ano "agitado" - perdão pelo eufemismo - uma polêmica pode ter passado despercebida por muitos, mas que serve de caso valioso para o estudo de como formas de licenciamento de conteúdos podem afetar a formação e fomento de comunidades de cocriação de valor. Falo aqui do vazamento do que seria a nova licença do mais famoso jogo de RPG de Mesa, o Dungeons & Dragons (D&D), que causou grande alvoroço dentro de sua comunidade de jogadores e criadores por revogar a licença anterior, válida a mais de 20 anos, em troca de muito mais controle, especialmente financeiro, sobre conteúdos e produtos derivados.

Antes da discussão, uma contextualização (não tão) breve. Desde os tempos da edição 3.5 de D&D, com a licença 1.0a, conhecida como Open Game License (OGL), uma série de regras, mecânicas, nomes, ideias e histórias, passaram a ser abertos ao público, como uma base para que uma diversidade de produtos e conteúdos fossem criados, permitindo não só a sua divulgação, mas monetização. Esse foi um marco na história dos Jogos de RPG de Mesa (TTRPGs), abrindo as portas para que outros jogos fossem criados, trazendo um público cada vez maior para a cena, além de diversas customizações para o próprio D&D, e produtos derivados que agregam cada vez mais valor ao mercado, que, dominado pelo D&D, significou mais valor para seus criadores, a empresa Wizards of the Coast (WotC).

Dentre os produtos derivados podemos encontrar muitas criações de pequenos e médios criadores de conteúdo online, como miniaturas de personagens, masmorras e monstros, cartas, dados, roupas e outros objetos que proporcionam maior imersão, tangibilidade e customização para a experiência de jogos, além de módulos com novas raças, aventuras, classes, magias e regras para serem adicionadas ou substituírem o jogo original de acordo com as preferências. Assim como outros jogos, baseados na licença 1.0a, mas que trazem seu próprio valor, como jogos de tabuleiro licenciados - como Senhor dos Anéis, Stranger Things, Star Wars e outros - e criações completamente novas, como o famoso Pathfinder e o gigante brasileiro Tormenta RPG.

Outra modalidade que ficou muito famosa ultimamente são aventuras jogadas e transmitidas, sendo o caso do Critical Role o mais famoso: uma mega produção de aventuras seriadas que contam com jogadores e mestre profissionais, que chegou a render US$ 14 milhões entre agosto de 2019 e outubro de 2021. As aventuras transmitidas ainda geraram o seriado animado Legend of Vox Machina, transmitido pela Amazon Prime Video, e já fechado para uma terceira temporada.

Sob o pretexto de proteger suas propriedades intelectuais do assédio tão recorrente e amplamente rejeitado de modelos de criptomoedas e NFTs, assim como de outras formas de exploração - como para conteúdos sexistas, homofóbicos, transfóbicos, racistas e preconceituosos -, a WotC buscou revogar a OGL em troca de uma nova licença, que trouxe dois principais pontos de discórdia com a comunidade: (1) obrigatoriedade de relatar lucros a partir da meta de US$ 50.000 totais sobre criações usando a licença e pagamento de royalties a partir de US$ 750.000 anuais em lucro; (2) posse da WotC de qualquer propriedade intelectual criada a partir da licença, dando a empresa total controle sobre criações da comunidade.

A questão não é criticar a proteção e controle sobre conteúdos problemáticos promovidos pela WotC, pontos muito bem aceitos no geral, e entendíveis dado o descontrole associado com abertura pura. Mas a decisão foi percebida muito mais como um ataque aos cocriadores que, juntamente da WotC, fazem do D&D o que é hoje. Aqui, valeriam algumas discussões, desde legais - para isso recomendo fortemente este vídeo do canal Legal Eagle no YouTube - até modelos de negócio. Mas quero trazer a discussão sobre como plataformas permitem diferentes formas de cocriação, e como isso pode ser fomentado e nutrido dentro de comunidades de consumo para a geração de um ecossistema robusto e valioso, mas, ao mesmo tempo, frágil.

Plataformas digitais, através de suas funcionalidades e como elas são desenhadas e apresentadas, são capazes de empoderar ou desempoderar seus consumidores (Kozinets et al., 2021). Não só isso, elas podem apresentar possibilidades de expressão, conexão, comercialização e cocriação (Shamayleh & Arsel, 2022), à medida em que seus usuários as perceberem, possuem destreza para executá-las e elas detêm legitimidade dentro do contexto (Davis & Chouinard, 2016).

As possibilidades materiais de ação apresentadas por plataformas, sejam elas digitais ou não, definem a gama de atividades que podem ser executadas a partir dela, ainda que sem intenção original de seus criadores (Nagy & Neff, 2015), chegando até a serem possibilidades contraditórias com o design original (Shaw, 2017). Tudo isso nos ajuda a entender a história do D&D e sua OGL com muito mais precisão, assim como o porquê da repercussão negativa da nova licença.

Considerando a OGL como uma plataforma através da qual jogadores, criadores individuais e empresas de pequeno e médio porte são permitidos e encorajados a participarem de processos cocriativos, vemos como a WotC proporcionou nada mais do que o sonho de toda comunidade de consumo com teor criativo: a oportunidade de não apenas customizar suas experiencias de consumo através da expressão individual, mas de comercializar suas criações em projetos individuais ou conjuntos.

A natureza expressiva e criativa de TTRPGs, onde tudo começa com a criação de um personagem próprio, claramente delimita legitimidade suficiente para fomentar trais práticas, enquanto cada um ou cada grupo executa tais possibilidades dentro de suas capacidades. Alguns desenvolveram classes completamente novas, outros aventuras e épicas, outros miniaturas meticulosas, e assim em diante.

Temos aqui dois pontos muito importantes: essas práticas como enaltecedoras do consumo de TTRPGs, e essas práticas como o próprio consumo de TTRPGs. Enquanto eu, que não vivo desse tipo de cocriação e jogo D&D e outros RPGs eventualmente, todos os seus derivados ajudam a enaltecer minha experiencia de consumo de D&D. O jogo original pode não conter a raça de preferência, eu posso querer me inspirar em aventuras paralelas, bonecos e outros produtos físicos podem me ajudar na imersão do jogo no dia da mesa. Mas, para muitos, sejam os que tiram da cocriação seu sustento, ou aqueles que fazem puramente como hobby, o consumo de TTRPGs está ainda mais fundamentalmente ligado ao processo cocriativo.

Em ambos os casos, é preciso compreender que o consumo de D&D passa hoje por práticas que são sustentadas pela OGL, e a sua revogação por um modelo mais controlador - por mais bem intencionada que a mudança seja - não poderia gerar outro resultado se não o boicote e a negação.

Tudo isso passa de uma percepção inicial de que tais possibilidades estão disponíveis para todos, de forma aberta, livre. Kozinets (et al., 2021) evidenciou que, ao mesmo tempo que certas funcionalidades de plataformas podem aumentar o empoderamento de seus usuários por um lado, ela pode limitar por outro. O novo modelo apresentado pela WotC buscava empoderar seus co-criadores alinhados com a empresa, seu produto, valores e crenças, em detrimento de derivativos indesejados e problemáticos. À medida que a WotC apresenta maior nível de controle e limitação dessas práticas, por mais nobre que sejam suas intenções, e mais insignificantes que sejam seus resultados reais, a mera imaginação dessas possibilidades tão poderosas se tornarem impossibilidades é suficiente para atear fogo em toda a comunidade.

Não é de hoje que empresas buscam geração de valor através da cocriação a partir de comunidades de consumo. Essa prática é antiga, e muito bem-sucedida quando bem executada. O jogo Elder Scrolls V: Skyrim, por exemplo, mantém muito de sua relevância mais de 10 anos após seu lançamento por conta dos mods¹ criados pela comunidade de jogadores (Kretzschmar & Stanfill, 2019). No mundo virtual de Roblox, todas as experiências mais famosas e os mundos mais acessados e lucrativos foram criados pela comunidade. E o que falar de redes sociais como YouTube, Twitter ou TikTok, onde todo o conteúdo é criado por seus usuários, apenas interrompido por propagandas intrusivas que sustentam a operação.

Ainda assim, são poucas as empresas que conseguem alcançar esse patamar de relação com seus consumidores quando falamos de produtos físicos, ainda que fundamentalmente experienciais como TTRPGs. Plataformas e ambientes de consumo centralizadores e controladores parecem cada vez mais relíquias de um passado distante e desconexo da realidade das práticas de consumo atuais.

A OGL sempre foi um dos maiores e melhor executados exemplos de plataformas que verdadeiramente empoderam seus consumidores, gerando valor para todo o mercado de TTRPG. Ainda que a WotC não lucre individualmente com cada produto ofertado nesse mercado, ela sempre se manteve no topo, como detentora do maior market share. A estratégia sempre passou pela lógica de permitir que um bolo fosse criado de forma compartilhada, na qual a WotC abre mão de ter todos os pedaços, mas termina com mais bolo do que se tudo fosse feito sozinho de qualquer forma.

Ainda que a existência ou não dessa nova licença faça alguma diferença em relação aos produtos e conteúdos derivados de D&D, com ela, parece que a estratégia passou a ser de largar mão do bolo compartilhado e se tornar virar dona das migalhas. O bolo dos TTRPG está em disputa, e quem manda no jogo pode não ser mais a Wizards of the Coast, isso se algum dia mandou.

Nota

(1) Modificações criadas para jogos criadas por consumidores, geralmente compartilhadas em comunidades online. Podem alterar e/ou adicionar tanto conteúdo como mecânicas.

Referências

Davis, J. L., & Chouinard, J. B. (2016). Theorizing Affordances: From Request to Refuse. Bulletin of Science, Technology & Society, 36(4), 241-248. https://doi.org/10.1177/0270467617714944

Kozinets, R. V., Ferreira, D. A., & Chimenti, P. (2021). How Do Platforms Empower Consumers? Insights from the Affordances and Constraints of Reclame Aqui. Journal of Consumer Research, 48(3), 428-455. https://doi.org/10.1093/jcr/ucab014

Kretzschmar, M., & Stanfill, M. (2019). Mods as Lightning Rods: A Typology of Video Game Mods, Intellectual Property, and Social Benefit/Harm. Social & Legal Studies, 28(4), 517-536. https://doi.org/10.1177/0964663918787221

Nagy, P., & Neff, G. (2015). Imagined Affordance: Reconstructing a Keyword for Communication Theory. Social Media + Society, 1(2), 205630511560338. https://doi.org/10.1177/2056305115603385

Shamayleh, G., & Arsel, Z. (2022). FROM BLOGS TO PLATFORMS: CONTENT LANDSCAPE AND AFFORDANCES. In R. Llamas & R. Belk, Routledge Handbook of Digital Consumption. Routledge.

Shaw, A. (2017). Encoding and decoding affordances: Stuart Hall and interactive media technologies. Media, Culture & Society, 39(4), 592-602. https://doi.org/10.1177/0163443717692741

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