A pedra era do tamanho de uma carroça
e voou pelos ares com a facilidade de um pássaro. Sua sombra passou pelas
cabeças dos elfos e os fez olhar estupefatos ou agacharem-se amedrontados como
se um dragão sobrevoasse o pequeno forte. Quando parou de subir e iniciou a
descida, completou o arco sobre um dos celeiros. A construção explodiu,
lançando pedaços de pedra, madeira e palha por toda parte. A poeira subiu
sufocando os elfos que gritavam desesperados e encolhiam-se de medo. Quando o
ar clareou novamente, os corpos espalhados no chão fizeram o choro superar até
mesmo o sufocamento.
Elfos
ajoelhavam-se diante de seus parentes mortos. Soldados corriam para ajudar os
civis. Eram liderados pelos magníficos Espadas de Glórienn, os únicos filhos da
Deusa Mãe que ainda não demonstravam o temor de sucumbir à barbárie dos
goblinóides.
Eleandil observava os sobreviventes rezarem. Passou a mão no
rosto sujo de fuligem e machucou-se ainda mais, prendendo a manopla em um
corte. Praguejou e olhou para o lado para dar uma ordem a um dos soldados.
Encontrou-o caído com um estilhaço de pedra enfiado na cabeça. O elmo estava
destruído e o sangue se espalhara pela terra juntamente com alguns pedaços de
ossos e um dos olhos.
Um Espada de Glórienn se aproximou de Eleandil ofegante.
Limpou o rosto com a mão e olhou para a devastação entre os muros da pequena
fortaleza.
- Eles estão preparando mais um tiro senhor. Não
resistiremos por muito tempo, erfel – disse.
O título de erfel ressoou pela mente do elfo por alguns
segundos. Não se acostumara ainda, mas desde que o líder do pequeno
destacamento fora morto, não restara ninguém com graduação maior do que
Eleandil.
- Precisamos sair daqui. Já contaram os mortos desse ataque?
– perguntou.
- Quatro, erfel.
Eleandil começou a caminhar. Amaldiçoava a teimosia de sua
raça. A capital imperial caíra há pouco mais de um mês e a maioria dos elfos
recusava-se a acreditar. Aqueles que aceitavam a notícia, ainda preferiam
morrer em suas terras a entregá-las à barbárie. Desde a queda, os goblinóides
marchavam pelo reino batendo em tambores novos feitos com pele de elfos. Apenas
os territórios ao norte ainda tinha sobreviventes que resistiam, mas Eleandil
sabia que não durariam muito.
Passou por uma criança caída. Chorava sobre o corpo da mãe
sem se importar com o sangue que escorria da própria cabeça. O guerreiro a seu
lado abaixou-se e tocou a cabeça do menino. Rezou para a deusa pedindo a cura.
Eleandil continuou caminhando.
- Reúna os Espadas de Glórienn. Quero todos aqui.
Olhou de volta quando não recebeu resposta. Havia um clérigo
ao lado do Espada de Glórienn, ajudando a curar a criança. O soldado
levantou-se e alcançou o erfel.
- O que aconteceu?- perguntou Eleandil quando o subordinado
parou diante dele calado, apenas esperando ordens.
- Esqueci-me que havia esgotado minhas magias de cura hoje –
disse o elfo.
O antigo erfel não precisava pedir respostas. Elas surgiam
sem ordens ou perguntas. Olhou para o Espada de Glórienn e torceu para que ele
não estivesse mentindo.
- Cite o terceiro lema – ordenou.
- A verdade está nas palavras desse servo da Deusa Mãe assim
como graça divina abençoa meu sangue através da minha fé.
- Acredite nele. Não posso perder nenhum guerreiro.
O elfo baixou a cabeça, com certeza lembrando-se da
caminhada até ali. Dois dos Espadas de Glórienn haviam cometido o crime maior
da elite guerreira dos elfos. Um deles ajoelhou-se na terra e pediu para
morrer, pois não tinha mais esperança na guerra. O comandante lhe cortou a
cabeça ali mesmo. O segundo chorou diante dos corpos daqueles que haviam
falecido durante a caminhada e gritou que Ragnar cegara Glórienn para as
atrocidades cometidas contra seus filhos. O comandante lhe entregou a adaga da
purificação ali mesmo e ele a enfiou no coração para retirar a blasfêmia do seu
sangue e a vergonha perante sua família.
Esse último fora irmão de Eleandil, o único que restara para
se envergonhar pelo pecado do Espada de Glórienn caído. Naquela mesma noite, o
guerreiro foi até seu comandante e o viu morrer quando uma pedra atravessou a
janela e destruiu uma das torres. O novo erfel só sobreviveu por causa dos
milagres de cura dos Espadas de Glórienn e dos clérigos.
- Aproveite para dizer que nenhum Espada deve usar suas
curas nos civis. Guarde-as para os guerreiros. Passe a ordem para que os
clérigos sempre reservem uma cura para os soldados. Os civis devem receber
apenas os cuidados mundanos. Vamos reservar a benção da deusa para aqueles que
podem salvar as vidas do nosso povo.
O soldado concordou e foi dar as ordens, enquanto Eleandil
subia as escadas do muro. Parou ao lado de dois arqueiros e olhou para o
acampamento globinóide. Estavam preparando mais uma pedra naquelas gigantescas
catapultas. O elfo não podia acreditar naquelas duas máquinas. Antes se
espantava com a sujeira e a barbárie das raças inferiores. Agora mais de cem
inimigos acampados não eram nada diante das máquinas de guerra que traziam. Via
corpos espalhados, sinais obscenos e ouvia gritos de vitória e as festas das
criaturas, porém nada disso o afetava. Somente o ranger das cordas das máquinas
alcançava seu coração.
- Tragam o corpo do meu irmão. Certifique-se que ainda está
vestido com a armadura dos Espadas de Glórienn.
Um dos arqueiros desceu a murada. Eleandil olhou para a
pequena fortaleza. Estava quase nas fronteiras do reino e ela deveria servir
apenas como ponto de apoio para os fazendeiros. Agora era o último refúgio
naquela região. Olhava para as montanhas adiante e tinha certeza de que já
havia refugiados passando por elas. Que os humanos agora colaborassem com os
filhos da Senhora da Graça Real. E que ele conseguisse retirar aqueles oitenta
civis e quarenta guerreiros dali.
- Filhos de Ragnar! – gritou Eleandil. Seus cabelos dourados
esvoaçaram quando o vento fedorento soprou pelo acampamento inimigo e tocou seu
rosto. Manteve os olhos cinzentos sobre as criaturas que pararam para ouvi-lo.
– Vocês querem nosso sangue? Terão o nosso sangue. Deixem-nos nos preparar para
nos entregarmos a vocês. Seremos seus escravos. Como prova disso, daremos o
corpo de um dos nossos comandantes a vocês.
O cadáver do irmão
chegou. Foi sem pedir desculpas ou dar atenção aos olhares impressionados dos
elfos a seu redor que ele ordenou que o corpo fosse jogado para os bárbaros. As
criaturas esperaram, temendo uma armadilha, mas todos os arcos foram baixados
quando Eleandil estendeu o braço e fez o sinal.
- Festejem perante esse corpo enquanto fazemos nossas
orações – disse o erfel.
*****
- O erfel perdeu a fé? – perguntou um arqueiro, assustado.
Tinha um olhar suplicante de quem se entregaria se recebesse uma resposta
afirmativa.
- Não.
- O senhor mentiu?
- Não existe mentira à sombra da barbárie.
Desceu as escadas e parou diante dos Espadas de Glórienn.
Havia dezesseis deles, todos com arcos, lanças e espadas limpos e abençoados.
Seus cavalos foram trazidos. Eleandil montou e olhou para seus guerreiros.
- Qual o segundo lema?
- Minha morte é doce perante a eterna vida dos meus irmãos.
Que eles vivam para perpetuarem a fé por quem amo e prezo acima de tudo. Que
eles vivam para que eu seja lembrado como filho da maior das graças entre tudo
o que é considerado divino.
Eleandil colocou o elmo.
- Preparem-se! Eles estão festejando e bebendo agora. Os
portões serão abertos e eu quero uma carga cerrada rumo às catapultas. Dois
grupos se separaram para dar a volta e causar distração. Os arqueiros começarão
os tiros pouco depois.
As ordens eram simples. Assim os clérigos apareceram e os
abençoaram, pedindo ótimos golpes, boa proteção e uma boa morte para quem não
sobrevivesse. Esperaram até a costumeira baderna dos globinóides começar.
Quando os portões se abriram, os cascos dos cavalos bateram na terra,
levantaram poeira e os elfos dispararam na direção dos inimigos.
A guarda da frente portava lanças naquele momento. Foi como
um triângulo que eles passaram enfiando as armas dos corações dos inimigos.
Aqueles que sobreviviam aos primeiros caíam com as gargantas cortadas pelos
outros. Logo atrás, as flechas eliminavam os inimigos na lateral, voando como
anjos da morte e reduzindo os goblinóides a cadáveres afogando-se em poças de
sangue.
O primeiro Espada de Glórienn caiu ao lado de Eleandil. Um
hobgoblin gigantesco acertou-o com um martelo de guerra, arrebentando o peito
do elfo e jogando-o contra o cavalo de trás. O estalo da caixa torácica se
quebrando foi ouvido acima dos bater dos cascos dos cavalos. O sangue que
encheu a boca do elfo sufocou o grito de dor.
O corpo se embaralhou nas pernas do animal do companheiro de
trás. A criatura relinchou assustada enquanto seus ossos se quebravam e a
cabeça do Espada de Glórienn era esmagada por um de seus cascos. Foi um com
salto espetacular que o cavaleiro se livrou da queda e caiu com a lâmina elfa
enfiada no peito do hobgoblin. Os milagres de guerra da Deusa permitiram que
ele matasse três inimigos antes de chamar pelo cavalo do companheiro e montar
de novo.
Os elfos das laterais abriam caminho e atiçavam a fúria dos
bárbaros, atraindo sua atenção. Matavam a esmo, procurando apenas aumentar o
sangue que manchava a terra. Eram quatro de cada lado e três desses elfos
tombaram após quatorze mortes quando seus milagres de guerra finalmente se
esgotaram.
Eleandil sentia as baixas no coração, podendo contar cada
morte através da magia que o ligava aos subordinados.
- Por Glórienn – gritou o elfo a seu lado.
- Pela vida eterna dos Filhos da Graça! – gritou Eleandil.
O elfo que perdera o cavalo e montara há pouco os alcançou.
Eles já estavam diante das catapultas. Eleandil arremessou a lança,
atravessando a cabeça de um oponente. Sacou a espada rapidamente, enquanto dava
a volta com três outros cavaleiros, cortando e gritando.
Outros quatro
circularam pelo outro lado. Os três restantes continuaram rumo à catapulta.
Guardaram os arcos, desprenderam as lanças dos cavalos e atravessaram a
multidão de goblinóides com toda a carga.
Caíram um a um na balbúrdia da batalha, chamando em vão por Glórienn.
Quebrados por martelos, perfurados por flechas negras ou lanças toscas,
tornaram-se corpos profanados por dúvidas e anseios.
O último desses elfos morria quando os grupos circulantes se
juntaram no lado oposto e penetraram na defesa da catapulta. Destruíram os
inimigos silenciosamente. Eleandial girou o cavalo, afastando os globinóides
enquanto chamava pela espada da deusa. A lâmina do elfo brilhava arrancando
sangue inimigo sem se manchar. Estava limpa quando parou de matar; tão limpa
que poderia ser usada como um espelho. O erfel pressionou o caminho. Viu um dos
companheiros tombar com o rosto assustado.
- Depressa! – gritou, assistindo a aproximação do último
elfo sobrevivente que participara da distração.
O cavalo de Eleandil foi atingido, empinando para cair sobre
um goblin. Eleandil se desvencilhou do animal e levantou-se cortando qualquer
inimigo que encontrasse. Quando deu por si, estava ao lado da catapulta já
destruída e com a lâmina coberta por sangue.
- Falta uma! – gritou desesperado, vendo quantos de seus
homens já estavam mortos. Seis deles ainda estavam montados, todos com as
lâminas avermelhadas.
- Abra espaço! – ordenou para um dos guerreiros mais
graduados.
O elfo levantou a espada e girou o corpo, chamando por
Glórienn. Penetrou na massa de globinóides como um furacão, com a lâmina
circulando e matando. O sangue voava enquanto os outros elfos o acompanhavam,
eliminando os inimigos agonizantes. Pararam de andar de repente, quando o
guerreiro da vanguarda foi engolfado pela maré inimiga. Pedaços do elfo voaram
sobre os companheiros que precisaram recuar de volta para a catapulta.
Eleandil olhou surpreso para os amigos ao redor, depois para
a espada.
- Ela está suja – disse para si mesmo.
- O que faremos, erfel? – perguntou um guerreiro.
Eleandil não sabia. Sua única resposta seria morrer por
Glórienn, mas quando tentava completar em sua mente as palavras do primeiro
lema, a gritaria dos inimigos o impedia de raciocinar. Precisava apenas matar e
sobreviver.
*****
Os braços dos elfos começavam a se cansar. As armaduras
haviam duplicado de peso e o calor da batalha eliminava o que restava de suas
forças. Eleandil enfiou a espada em um bugbear, jogando-o para cima dos
inimigos que o cercavam e aumentando a área do círculo de proteção dos elfos.
- Não tenho mais flechas, erfel! – gritou um dos homens
montados no meio do círculo.
- Chame por elas!
Ele chamou. Clamou pelas setas sagradas da deusa e levou a
mão à aljava vazia. Flechas prateadas deveria aparecer em sua mão, mas seus
dedos voltaram tão vazios quanto seu coração assustado. O medo nos olhos do
arqueiro sagrado se espalhou pelos guerreiros como doença da alma que corrompia
sua fé.
Eleandil procurou por luz em seu coração, mas a que o
encontrou veio de fora, quando um relâmpago atravessou os globinóides deixando
corpos queimados ou em convulsão enquanto o caminho dos elfos era aberto. Três
guerreiros vestindo capas negras surgiram montados, matando com a mesma graça
dos Espadas de Glórienn. Deram montaria a quem estava a pé e rumaram para os
portões. Um quarto cavaleiro se juntou a eles e foi só quanto estavam dentro da
fortaleza que o erfel notou os elfos que haviam o salvado. Eram guerreiros
sisudos de cabelos e olhos negros, vestidos com armaduras cobertas por sangue.
Algumas pareciam modificações dos armamentos dos Espadas de Glórienn.
- Que a deusa os abençoe por terem salvo servos fiéis dela –
disse Eleandil.
Nenhum deles respondeu. Pareceram incomodados pelas palavras
de agradecimentos. Um deles, um elfo mais velho cujos olhos negros tinham a
sombra de pesadas decisões, deu um passo a frente. Era o único que não se
vestia com roupas de guerreiro. O manto escuro e o bastão tornavam óbvia sua
posição como mago.
- Vi sua atitude e considerei louvá-lo, erfel Eleandil –
disse o arcano.
- Qual seu nome? – perguntou o elfo.
- Kessarel.
- Como sabe meu nome?
- Berforam disse-me que estaria aqui juntamente com o erfel
Serran. Pude constatar pela sua posição que ele já está morto. Pode me
confirmar a notícia?
- Sim.
- Nossa missão aqui acabou então.
Eleandil olhou estupefato para Kessarel. Atrás dele, os
elfos cochicharam e alguns xingaram. Os Espadas de Glórienn exigiram silêncio.
- Não nos ajudarão a escapar?
Kessarel olhou para os elfos à frente.
- Vocês não querem escapar. Vocês querem ficar. Não posso
ajudá-los a ficar, a não ser que peçam que eu passe uma adaga em suas gargantas
e os enterre aqui.
Eleandil deu um passo a frente, cerrando o punho e levando-o
ao rosto. Encostou a mão na boca para conter as palavras iradas.
- Kessarel, resistir aqui é provar que nosso povo ainda tem
esperança.
- Não se vive por esperança.
- Mas não podemos roubar os sobreviventes dessa esperança.
- Não estou roubando nada de ninguém, mas quem me acompanha
vive por fatos, seja pela aceitação dos passados e presentes ou pela construção
dos novos.
- E você manda em alguma coisa? – perguntou um clérigo atrás
de Eleandil.
- Não. Nosso líder é Berforam aqueles que vocês conhecem
como o eriand dos Nitfahglorienn, comandante supremo dos Espadas de Glórienn.
Ou melhor, era. Estava aqui para passar o posto para Serran. Era o comandante
mais próximo que eu pretendia encontrar.
Os pensamentos de Eleandil pararam por um momento. Berforam
fora de seu posto? Aquela notícia caiu sobre ele como uma avalanche, cada pedra
atingindo sua alma de uma vez. A primeira foi um aviso de algo terrível. Se
Serran estava morto, então ele receberia o cargo. Só na segunda o elfo entendeu
que para receber um cargo desses Berforam deveria estar morto. Só se deixa de
ser um Nitfahglorienn morrendo, seja pela própria espada ou pela dos inimigos.
- Berforam deixou a posição abençoada de Nitfahglorienn?
- Sim.
As mãos de todos os Espadas de Glórienn foram imediatamente
às lâminas. Olharam para os elfos atrás de Kessariel.
- Vocês também são guerreiros sagrados?
Um deles, uma elfa com uma cicatriz no rosto, respondeu.
- Éramos.
- Não se diz “fui” na mesma frase em que se pronuncia “eu” e
“Espada de Glórienn”.
- Agora se diz – disse a elfa.
- As coisas mudam, Eleandil.
As armas saíram das bainhas. Os clérigos prepararam os
milagres de guerra que ainda tinham.
- Vocês ainda podem ter a honra de usarem suas adagas contra
seus peitos.
Kessarel continuou falando como se as armas ensangüentadas
não lhe dissessem respeito.
- Agora a elite que caçava desertores foi destruída. Um dos
poucos que restava era Serran, um dos guardiões da fé.
- Você os matou e veio para passar o cargo a Serran?
- Só vim com a segunda intenção. Matei poucos deles. Foi
Berforam quem assassinou a maioria dos caçadores da fé.
Eleandil
parou para pensar. Era óbvio. Se Berforam deixou a fé, uma mensagem fora
passada para a alma de todos os caçadores. Eles deveriam eleger um novo líder
ou matar aquele que abandonou a benção. Mas quem entre os elfos conseguira
vencer Berforam em combate direto?
-
Sinto, mas vocês quatro morrerão hoje.
- Não
morreremos. Já disse que passaria a adaga nas gargantas de todos vocês e ainda
o faria, começando pelos clérigos. O que não farei será enterrar seus corpos.
Todos os seguidores de Glórienn apodrecerão.
O susto
nos rostos dos elfos foi maior do que o que viram em todos aqueles dias de
guerra, quando os grupos de resistência eram eliminados continuamente e a vida
no império se tornara puro terror. Flechas e espadas apontaram para as figuras
de negro. Quando a primeira foi disparada, desviou-se por um círculo de vento
que a fez voar por cima do muro. As outras encontraram o mesmo resultado.
Os
soldados com espadas pararam o ataque quando Eleandil ergueu a mão e depois
apontou a fina linha de fogo que circulava o quarteto.
- Vocês
não escaparão daqui – disse o erfel.
- Eu
usaria essa frase para vocês, mas odeio essas frases de efeito. Dizer o óbvio
me cansa. Eleandil, você é o novo eriand. Cuide bem de sua posição.
- Diga
a Berforam que eu sobreviverei e o caçarei!
- Ele
não esperaria menos de você. Não espera menos de ninguém que tenha treinado. Só
que também pede para que nenhum de vocês espere clemência por parte dele.
- Como
ele pode ter abandonado a deusa que lhe deu filhos e o protegeu por tantas
batalhas? Ele negará isso ago....
Kessarel
balançou a cabeça e levantou a mão para interromper o novo eriand.
- Ele
também pede para poupá-lo dessa pieguice toda de falar sobre as glórias e
bênçãos do passado. Quero dizer... Ele não pede isso, mas eu ouvi tanto disso
nos últimos dias que estou incluindo esse pedido. Melhor vocês saberem que as
coisas mudam e pessoas inteligentes sabem quando precisam se contradizer.
Os
Espadas de Glórienn ergueram seus arcos. Apontaram flechas de ponta prateada
para Kessarel e seus guerreiros. Bastava a ordem de Eleandil para que
disparassem. Kessarel sorriu e depois quase gargalhou.
-
Desculpe o sorriso de vilão poderoso cheio de segredos. É um dos meus
prediletos. Pretende realmente deixar que seus companheiros atirem, eriand?
- Sua
magia não é capaz de deter nossos milagres de guerra. Você sabe do que a flecha
de um Espada de Glórienn é capaz – disse Eleandil.
Kessarel
fitou-o diretamente nos olhos.
- Eu
posso lhe garantir que essas flechas não me atingiriam. E também lhe garanto
que o dano delas será maior em suas almas do que em seus corpos se elas se
voltarem contra vocês.
Os
guerreiros sagrados olharam para Eleandil procurando resposta. O elfo, o único
sem arco, pensou naquelas palavras. Olhou para a espada ensangüentada e
lembrou-se das mortes dos companheiros de guerra. Nenhuma delas deveria ter
ocorrido. Os milagres deveriam salvá-los. As dúvidas que lavaram a força de sua
alma durante a batalha logo voltaram.
- Não
atirem – ordenou.
Esperava
que Kessarel sorrisse, mas ele olhou seriamente para Eleandil. O novo eriand
então compreendeu a profundidade daquele teste.
- Os
elfos se ajudarão e apoiarão nossa mãe, não importa o que aconteça – disse.
A
verdade era que ele não sabia ao certo o que estava acontecendo, mas as mortes
dos colegas, tombando quando os milagres deveriam mantê-los vivos lhe diziam
que a Deusa Mãe não estava os alcançando como antes. Falha de fé ou falha
divina? Deuses falham?
-
Estamos do lado da nossa Mãe.
-
Mãe... De fato... – disse Kessarel.
- Nós a
ajudaremos a reerguer o império.
Agora o
elfo de cabelos negros sorriu.
- Vou
embora, Eleandil, mas deixe-me dizer-lhe uma coisa. Não se ajuda um deus, mesmo
que você chame essa divindade de mãe ou de pai. Só existem três coisas que você
pode fazer por um ser divino – disse, levantando a mão e começando a mostrar os
dedos um a um. - Você morre por um deus. Você mata por um deus. Você ora por um
deus. – Cerrou o punho. – Você não ajuda um deus. Olhe para esse muro. Pense no
que você faz por ele? Conserta, dá vida ao interior, enfeita, mas não fica
diante dele quando as pedras dos goblinóides são arremessadas.
Kessarel
andou até perto dos outros três elfos de negro, enquanto tantos indivíduos
atrás de Eleandil tentavam entender. Um clérigo mais próximo chorou. Outro se
ajoelhou e misturou suas lágrimas à terra.
-
Quando a noite chegar, os portões se abrirão. Escolham o que pretendem e
lembrem-se que não haverá volta nessa escolha.
O
quarteto desapareceu, transformando-se em sombras e desvanecendo sob a luz do
sol.
Eleandil
ajudou um dos clérigos a se levantar. O outro ainda molhava a terra com as
lágrimas. Sujava o rosto com barro e perguntava ao solo e ao sangue derramado
nele onde estava a verdade sobre tudo o que acreditara.
*****
Os soldados estavam todos preparados diante dos portões. Os
escudos foram levantados e as lanças afiadas. Eleandil mediu o peso da arma e
olhou para os homens. Chamou os Espadas de Glórienn restantes para permanecerem
na vanguarda. Naquele dia, o estilo de guerra élfico seria abolido. Seriam uma
parede de escudos e não a graça pura das espadas fatiando os bárbaros na dança
conjunta dos filhos eternos.
Ouviram
os tambores dos inimigos batendo forte. O barulho atormentava as almas mais
fracas, mas enchia Eleandil de resolução. Quando os portões se abriram, não por
magia ou por força, mas sim porque os elfos queriam escapar, a escuridão da
noite entrou com o fedor do acampamento bárbaro. Eleandil viu as estrelas do
norte e soube que era o tempo de rumar para lá onde a podridão humana reinava.
Um
grupo de elfos tentou fugir à frente. Eles correram na direção dos goblinóides.
Eram vinte. Nove deles hesitaram e naquela mera parada, flechas e lanças os
perfuraram. Os outros passaram livres pelos portões, sumindo na escuridão.
Eleandil suspirou e gritou.
- Qual
o primeiro lema?
- Minha
eternidade se resume a amar aquela que me agraciou com um único motivo nobre
para morrer! Que um suspiro de amor seja minha última prece à Única Senhora dos
Elfos!
Então
eles rumaram na direção dos portões e ali se mantiveram. Os inimigos investiram
velozmente, berrando como animais desesperados. Seus olhos vermelhos brilhavam
na noite como estrelas que prenunciavam a morte.
Os
elfos cerraram as fileiras e os escudos bateram uns nos outros. Sentiram a
presença do amigo ao lado e confiaram no sangue e na fé que os unia. Foram as
lanças que seus irmãos forjaram que se enfiaram nas entranhas podres dos
primeiros goblinóides a se aproximarem. E foi o brado de guerra de irmãos de fé
e sangue que saltou na noite acima dos gritos desgraçados dos oponentes.
Juntos
aos portões, eles resistiram. Ali eles mataram mais de cem filhos de Ragnar.
Quando a manhã chegou, havia doze corpos de elfos caídos no meio dos cadáveres.
Eleandil ajudou a carregá-los e cremá-los, pois não os deixaria junto ao lixo.
Os
sobreviventes seguiram em procissão para o norte. Eleandil se recusou a
chamá-los de refugiados. Eram romeiros rumando para novas terras onde
reformariam a fé da Única Senhora dos Elfos. Que todos os Lemas da Senhora
Eterna estivessem em seus corações.
Author: Antonio Augusto Shafthiel
Author: Antonio Augusto Shafthiel
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