O vento soprava pela muralha, vindo diretamente da densa
mata dezenas de metros adiante. O ar estava carregado de expectativa, trazendo
também o cheiro de terra e o barulho contínuo da mata dos sussurros. De pé no
alto do muro, ele observava. Berforam Lâmina de Luz fixava olhos sérios e
aperolados adiante, avaliando toda a distância entre o posto de vigília
recém-construído e a beleza das árvores. Algumas delas se misturavam aos
tijolos que formavam a proteção para dar ainda mais firmeza à barreira. Era um muro
tão espesso e firme quanto o próprio homem que estava sobre ele.
O líder élfico tinha títulos pomposos e longos como era
normal da raça. Ele não era apenas Berforam, era Lord Berforam, era Berforam
Dannórien da casa Zafirah, era Berforam da Oitava Geração Dannórienn a pisar em
Arton, era Primo do Rei Imortal Khinlanas e líder supremo dos Espadas de
Glórienn. Tinha alma de guerreiro, sangue de nobres e do povo comum, olhos de
líder e fé de sacerdote. Ele não era menos do que um homem de armas e mais do
que um sacerdote, segundo suas próprias palavras. Homem orgulhoso do sangue que
corria em suas veias, rezava todos os dias agradecendo pela supremacia élfica e
por poder proteger seu povo dos bárbaros globinóides.
Berforam carregava símbolos de status como era o caso da
espada Enanquessir, abençoada por Glórienn. Era uma arma que ele retirara do
antigo líder dos guerreiros sagrados da deusa, passando a liderança para a casa
que carregava a Orquídea do Dragão no escudo. A arma que cortava tão rápido
quanto o sol e tinha golpes tão quentes que evaporavam o sangue inimigo não
garantiu a proteção do seu ex-dono perante à habilidade do Dannórien. Agora ela
estava à esquerda da cintura do elfo de olhos atentos. Não carregava nenhum
arranhão e nunca perdera o fio nos trezentos anos desde que fora forjada e
abençoada. Tinha um cabo de ouro e prata com a face de Glórienn modelada
perfeitamente.
A perfeição era uma das obsessões dos elfos. Berforam era
vítima dessa mania que o fazia treinar para defender o povo. Também era
abençoado com uma beleza incomum. O corpo bem constituído, de músculos
definidos era coberto por uma pele de poucas cicatrizes e cor tão suave quanto
o sol de Lamnor permitia. Os olhos eram tão aperolados e brilhantes quanto os
fios de cabelos que se quedavam sobre os ombros cobertos pela armadura. Às
vezes fazia tranças para não se incomodar com os cabelos longos durante as
batalhas. A proteção do corpo era dourada e negra com os símbolos da deusa no
peito, arco e flecha prateados estampados para o orgulho daquele guerreiro
fiel. A capa que o protegia dos ventos era branca como os espíritos da noite.
A mente do elfo vagava junto com os olhos, alcançando aonde
a visão chegasse para avaliar o perigo que estava para chegar. Berforam
reconhecia os sinais de um mal iminente. As nuvens negras que começavam a
formar não eram apenas de chuva. O sopro do ar trazia mensagens de morte. O
vento levantava a poeira na área livre e criava fantasmas que eram os arautos
da aproximação inimiga. Ele sentia. O sangue de guerreiro o mostrava. Não eram
instintos, porque elfos estavam acima disso. Era a alma evoluída, presente de
Glórienn, que o mostrava.
Começou a emitir ordens para uma preparação bélica. Os
homens deviam se posicionar e manter atenção contínua. A troca de turnos era
importante e deveria ser feita discretamente para evitar que os inimigos se
aproveitassem do momento crítico. As palavras do elfo chegavam a outras orelhas
pontudas como ordens divinas e ele agradecia pela obediência. Segurou um
pingente de prata que sempre carregava onde fosse. Ergueu a cabeça para os céus
enquanto colocava uma mão sobre o peito. Foi com humildade que pediu forças a
deusa.
“Eu me submeto à Senhora Nossa Mãe e peço a guarda da minha
alma para que eu possa continuar a proteger nosso povo. Agradeço à Deusa que
está nos Céus e no meu sangue”, orou, parando quando sentiu o perfume da mulher
que amava.
A esposa escolhera a época errada para visitá-lo. Seria essa
a razão de estar tão preocupado? Celiene era sua fraqueza e sua força, era uma
paixão desvairada que o submetia há setenta anos. Era o maior presente que
Glórienn já lhe dera. Ela e os três filhos que já haviam saído de seu ventre.
Felizmente os dois mais novos não estavam ali. Apenas o mais velho, que seguia
os passos do pai.
A elfa o abraçou por trás com aquele toque de quem merece
toda a confiança. Berforam se virou devagar para aninhá-la nos braços. Era bom
ter certeza de que ela estava viva. Sentia-se mais forte quando a tocava.
Aqueles olhos dourados o inspiravam a lutar para a proteção do povo e a nunca
duvidar do quão perfeito fora o trabalho de Glórienn ao criar os elfos. Ah,
amor assim era raro. Sentimento que queimava a cada segundo para brilhar em
seus olhos e aquecer sua pele desde quando pensava nela até nos momentos de
amor nos lençóis.
Ele não queria perde-la e sentia que sozinho nunca seria
capaz de defendê-la, por mais orgulhoso que fosse de suas capacidades. Morreria
por ela, porém não dispensava a habilidade dos outros Espadas de Glórienn.
Ficava mais tranqüilo com a elite guerreira por perto. Berforam deixaria mil
flechas vararem seu peito para proteger Celine, porém não poderia admitir que
enquanto morria alguém pudesse tocá-la.
- Algum problema? - Celiene perguntou, sentindo a
preocupação do marido. Ela o conhecia e não precisava nem de sentir seu cheiro
para saber que algo afligia a alma do guerreiro.
- A tempestade - o guerreiro respondeu, desviando o olhar e
apontando para o horizonte. As nuvens negras se movimentavam no céu tomando
formas monstruosas. O forte vento que soprava poderia ser hálito maligno
daquela criatura elemental.
- Acho que não escolhi uma boa semana para vê-lo - a elfa
disse, sabendo que completava os pensamentos do marido. Berforam se preocupava
com a vida de todos os elfos. Mas naquele posto de vigilância moravam apenas
guerreiros e eles sabiam se defender. Celiene não.
Recentemente os glóbinóides haviam aparecido com mais
intensidade. Justamente por isso, os Espadas de Glórienn estavam ali. Elas
deveriam impedir a entrada de seus inimigos no território élfico. Khinlanas
achou desnecessário, afirmando que os estúpidos goblinóides nunca passariam da
Mata dos Sussurros. Um grupo de guerreiros liderados por um sacerdote de
Glórienn seria suficiente. Berforam não concordou e o rei não ousou
questioná-lo. O nobre Zarfirah submetia-se à realeza, porém, quando o orgulho e
a fé borbulhavam no sangue, nem mesmo a figura de Khinlanas o enfrentava
sozinho ou diretamente.
O guerreiro sagrado estava certo. Desde que passaram a
controlar o posto, cerca de duzentos hobgoblins foram mortos. Simples
guerreiros não resistiriam a esses ataques constantes. Apenas a experiência de
seu líder aliada ao poder divino das Espadas de Glórienn permitiu a sobrevivência
de todos e a proteção da fronteira.
- Acha que haverá algum ataque hoje? - a elfa perguntou, na
esperança de poder passar uma noite em paz com seu marido.
- Tenho quase certeza, meu amor. Quero que parta amanhã de
manhã e fique com nossos filhos. Não quero que se arrisque aqui. Mandarei três
guerreiros a escoltarem junto com uma mensagem para manter todo elfo longe da
região. As patrulhas de rastreadores também devem ser dobradas - Beforam disse,
já pensando nos planos. Abraçou a esposa com força, como se seu único medo no
mundo fosse perdê-la. Os dois se beijaram longamente e ficaram abraçados por um
tempo, observando a tempestade e conversando sobre seu significado. Acabaram
concordando que Glórienn os protegeria de qualquer mal.
****
Era uma noite de presságios ruins. Os inimigos estavam
ocultos pelos elementos agitados e caóticos que se erguiam e se misturavam no
ar. Khessarel, o mago e melhor amigo de Berforam, balançava a cabeça xingando a
si próprio pela incapacidade de desfazer aquela barreira elemental que
incomodava tanto o trabalho das sentinelas. Coçava o queixo enquanto os olhos
perdiam-se em preocupação e procura por uma solução. Entretanto, ainda que os
sentimentos oprimissem a alma, nem uma única ruga de preocupação surgia no rosto.
Era uma figura controlada e segura de si que não se rendia à observação
externa. Tentava imaginar se poderes clericais ajudariam, porém Lissinim, a
jovem sacerdotisa local, não fora de muita valia.
A magia não fora útil até o momento, portanto os Espadas de
Glórienn decidiram que a espada e a fé deveriam bastar. Eram o que sempre lhes
serviram melhor e nunca lhes faltaram. Rel´Keram, filho mais velho de Berforam
e Celiene, estava liderando o posto naquela noite. Ele se aproximou de
Khessarel com a mão no punho da espada.
- O que você acha? - o jovem guerreiro perguntou ao velho e
experiente mago.
- Seu pai está sempre certo, meu jovem. Aprendi a não
duvidar de sua sabedoria durante esses anos - Khessarel respondeu. Ele estava
com os braços cruzados e não retirava os olhos da escuridão do horizonte.
Naquela noite, a lua não aparecera e o vento gerava ruídos horríveis, parecidos
com gritos de almas desesperadas. Geralmente, as noites na Mata dos Sussurros
eram calmas e o sopro do vento gerava apenas ruídos fracos como sussurros. O
mago estava preocupado com a mudança.
- O antigo líder do posto disse que já aconteceram outras
tempestades por aqui e sempre que o vento sopra mais forte aparecem esses
gritos - Rel´Keram disse, tentando acalmar a si mesmo e ao mago. Khessarel
quase riu, mas não caçoaria do filho de Berforam. Elfos não esqueciam de
ninguém que feriam seu orgulho. Além do mais, Rel´Keram ainda teria muito tempo
para aprender a avaliar os sinais do mal.
Assim que o guerreiro terminou a frase, Lissinim se
aproximou.
A pequena sacerdotisa apareceu nervosa e apreensiva. Fora
alistada para acompanhar aquele grupo de Espadas de Glórienn há poucas semanas
apenas porque o clérigo habitual que os seguia não pudera comparecer. A pequena
e jovem elfa era a única disponível no momento.
Berforam dizia que aquela seria uma boa experiência para a
garota, mas ela duvidava disso principalmente porque o que os guerreiros
chamavam de boa experiência ela preferia não ver. Além do status por estar ao
lado das Espadas de Glórienn, só havia mais uma coisa que a elfa gostava ali.
Ela se apaixonara por Rel´Keram e sempre procurava um motivo para estar ao seu
lado. E, naquela noite, além da paixão, ela queria sentir segurança.
- Lissinim, tudo bem? - o elfo guerreiro perguntou, após
fazer o gesto habitual para cumprimentar um sacerdote. Mostrou a palma da mão e
a apontou na direção do coração de Lissinim. Ela respondeu com o cumprimento
certo para um guerreiro sagrado, bateu a mão direita aberta na palma esquerda.
Khessarel resmungou e balançou a cabeça. Não entendia o
motivo daqueles rituais. Os dois se conheciam e se gostavam, dormiam abraçados
durante a noite e, no entanto, sempre se cumprimentavam da mesma maneira. A
sacerdotisa entendeu errado o resmungo e começou a tomar posição para se
apresentar ao mago. Ele simplesmente abanou a mão a dispensando.
- Os soldados parecem um pouco nervosos, mas eu já conversei
com eles. Os Espadas de Glórienn estão preparados. Sua fé é inabalável e sei
que chegariam até o fim do mundo por nossa deusa - Lissinim disse. Khessarel
achou o discurso desnecessário, porém a formalidade élfica praticamente o
exigia. Agora era hora de alguém dar uma resposta pomposa.
- Nossas armas sempre estão prontas para se erguer em nome
da deusa - Rel´Keram disse, ignorando mais um resmungo de Khessarel. O mago
odiava aquelas conversas melodramáticas. Por que os dois não começavam a se
beijar de uma vez e se calavam?
- Essa noite será longa, mas teremos a proteção da... -
Lissinim tentou continuar, mas foi interrompida por Khessarel.
- Cuidado! - o mago gritou, já erguendo um escudo mágico. A
barreira brilhante citilou quando sete flechas a atingiram. A madeira das setas
partiu-se e espalhou-se pelo chão, o barulho acompanhado da espada de Rel´Keram
sendo desembainhada. - Hobgoblins. Demorou, mas eu consegui enxergá-los. Agora
sim! Estava guardando essa magia para acabar com a escuridão próxima. Ela não
durará muito tempo. Lissinim, chame Berforam. Rel´Keram, prepare-se para a
primeira das piores batalhas de sua vida.
Uma correria se iniciou nas muradas do posto de vigilância.
Enquanto isso, Khessarel procurou pelos componentes materiais de sua magia nos
bolsos de seu manto. Retirou uma pétala de uma orquídea negra, uma das plantas
mais raras de Arton e esfregou nas mãos. Enquanto começava a recitar as
palavras mágicas, a planta começou a pegar fogo. Pequenas faíscas começaram a
surgir nos dedos do mago, expandindo-se aos poucos até desaparecerem instantaneamente.
O sumiço foi seguido por um clarão súbito que iluminou uma centena de metros á
frente.
Para a surpresa de todos, mais de cinqüenta hobglobins
estavam escondidos na mata próxima. Começaram a correr na direção do posto de
vigilância como criaturas desgraçadas e violentas que eram. Carregavam a
sujeira e o fedor da existência de Ragnar naquela marcha furiosa. Flechas,
vindas de ambos os lados, tomavam o ar iluminado para aterrissar em armaduras
rígidas ou em carne macia. Khessarel começou a preparar bolas de fogo que
clareariam ainda mais a noite. Em pouco tempo, o odor de carne queimada já se
espalhava enquanto a tropa de goblinóides avançava e deixava corpos de irmãos
carbonizados para trás.
*****
No início, Berforam imaginou que as muralhas os protegeriam.
Bastaria atirar magias e flechas de lá de cima para acabar com todos os
hobgoblins. Ele estava errado. A dor do erro o perseguiria pois os golpes que
seguiriam não atingiram sua pele, mas sua alma. O pesadelo começou quando a
primeira pedra voou assobiando pelo ar infectado da noite. Os olhos de Berforam
mal acreditavam quando a imensa rocha desceu para bater contra as muralhas. Os
tijolos e as árvores se partiram como vasos de cerâmica e gravetos jogados no
chão.
O elfo não se abalou por muito tempo. As ordens saltaram
depressa para que os guerreiros saíssem do posto de vigilância. Era preciso
alcançar os inimigos no campo de batalha e impedir o avanço. Os Espadas de
Glórienn entrariam diretamente na batalha, enquanto Khessarel lideraria os
guerreiros que ficariam na muralha, dando apoio com arcos e na proteção da
retaguarda.
Lissinim observava assustada. Uma pedra caíra a metros dela
e os estilhaços gerados a derrubaram. Não houve ninguém para ajudar a elfa a
levantar-se. Os guerreiros precisavam passar apressados para alcançarem os
inimigos. Quase tremendo de medo, só mudou de atitude quando, de pé, viu
Berforam avançar para a luta com a aura radiando coragem e orgulho élficos.
Lissinim começou a rezar para a vitória dos filhos da Deusa. Fez uma prece
especial para Rel´Keram.
O jovem guerreiro lutava ao lado do pai, impressionado com a
cena de batalha proporcionada pelos Espadas de Glórienn. Berforam movia-se
entre os monstros como um gato, desviando-se de ataques e levantando
Enanquessir para derrubar inimigos com um golpe só. Rel´Keram quase duvidava
que a espada realmente atingisse os goblinóides. Os golpes eram rápidos demais
e o sangue que espirrava das feridas logo desaparecia no ar, evaporando devido
ao calor da espada sagrada.
A luta estava equilibrada. Eram três goblinóides para cada
elfo. Berforam esperava mais. Aquela batalha mal estava o cansando. Os Espadas
de Glórienn avançavam sobre os goblinóides e desfaziam a parca organização dos
monstros com entradas rápidas e golpes inclementes. Berforam sentia o cheiro de
sangue e agradecia à deusa por não ter aquele mesmo líquido podre e fedorento
correndo em suas veias. Era o agradecimento de todo elfo nas orações, ter
nascido elfo, ser um Filho da Deusa. A existência daquelas criaturas era a
prova do quanto eles eram melhores e do que deviam à Mãe Élfica por ser o que
eram.
A batalha terminou antes do esperado. Os goblinóides que
ainda estavam no meio das matas recuaram, levando os estranhos instrumentos que
utilizaram para arremessar suas pedras. Berforam impediu qualquer tentativa de
perseguição. Com certeza seriam mortos se entrassem na mata. E havia algo de
estranho naquele ataque. Aquilo parecera apenas um teste.
O guerreiro percebeu que fora um teste bem sucedido assim
que olhou para trás e viu os muros do posto de vigilância destruídos. Ele
interrompeu seu agradecimento a Glórienn assim que se lembrou de Celiene.
Berforam começou a correr de volta, dando ordens para que levassem qualquer
ferido para os cuidados de Lissinim.
*****
Khessarel balançou a cabeça lamentando a desgraça à frente.
Ele bem que preferia estar triste pela destruição dos muros ou pelos novos
instrumentos de guerra dos goblinóides, mas não, estava diante de algo pior. Em
meio aos tijolos quebrados e escombros do antigo posto estava Celiene.
Khessarel se abaixou para verificar o estado da elfa. O sangue escorria pela
boca e pelo nariz, um braço estava roxo e torcido enquanto uma das pernas sumia
debaixo das pedras. O peito dela se movia com dificuldade. Khessarel deu ordens
para chamarem Lissinim e Berforam. Teve medo de tocar a esposa do amigo e
causar mais danos.
Foram precisos dois guerreiros para impedir que o líder das
Espadas de Glórienn corresse até sua esposa. Todo guerreiro sagrado tem o dom
de curar outro elfo com o simples toque de sua mão. No entanto, aquilo não
bastaria no momento. Sua esposa precisava de cuidados mais urgentes que
apenas a sacerdotisa poderia
providenciar.
Lissinim rezou por bastante tempo e derramou água com
pétalas de rosas nos ferimentos de Celiene. Infelizmente, mesmo com toda sua
fé, a jovem não conseguiu curar completamente a esposa do general. O que
conseguira apenas havia permitido aos elfos carregarem Celiene para um local
mais adequado, onde pudesse esperar por sua morte com um pouco de conforto. Ela
foi levada para um quarto pequeno, mas aconchegante, cheio de desenhos e decorações
belas. A cama era macia e confortável, coberta por lençóis prateados, sempre
colocados para os elfos moribundos descansarem.
Berforam sentou-se ao lado da esposa e não saiu dali o dia
inteiro. Não derramou uma lágrima, pois acreditava que Glórienn ainda poderia
salvá-la. E se fosse vontade da deusa ter sua esposa, assim seria. Ele apenas
parou suas preces para encarregar Khessarel e Rel´Keram da liderança do posto.
Foi um ato de lamentação, pois ele sabia que não deveria abandonar o comando.
Já enterrara tantos amigos e subordinados antes, por que agora se sentia tão
fraco e desolado?
- Não se preocupe, meu daelih, meu querido. De um jeito ou
de outro, estarei a seu lado. Eu me unirei a Glórienn e sempre que você rezar
para nossa deusa, estará conversando comigo - Celiene disse, em um dos seus
poucos momentos de consciência.
- Poupe suas forças, meu amor. A deusa não te chama ainda -
Berforam disse, mas ele mentia para si mesmo. O elfo via o sangue da esposa
escorrendo pelo lençol e sentia seu coração se apertando. Cada gota vermelha
era como um pouco de areia caindo na ampulheta da vida.
- Não minta para si mesmo, meu daelih. Eu sinto o chamado
dela e não temo. Despeça-se de nossos filhos em meu nome. Não precisa dar
nenhum recado além de pedir para rezarem para a Deusa. Aí nós conversaremos -
sussurrou e abriu os braços, esperando um abraço. Berforam se aproximou
cautelosamente e a envolveu com todo seu amor, mas já cheio de saudades.
Quando os dois se soltaram, o calor do corpo de Celiene já se
esvaía. O coração não se movia no peito com o ardor de todas as vezes em que
via o marido. O guerreiro ficou parado por alguns instantes apenas a
observando. Havia um dragão em seu peito que devorava suas forças e ele ainda
pensava em como resistir àquela fera nascida da morte da esposa. Então ele
pediu que a Deusa a trouxesse de volta. Rezou durante quase meia hora, com medo
de chamar qualquer pessoa que confirmasse a morte da elfa. Quando finalmente
aceitou o fato, agradeceu a Glórienn pelo fato de os dois terem conversado
antes da partida de Celiene.
Berforam aproximou seu rosto dos lábios da esposa para um
último beijo. Para sua surpresa foi correspondido. O guerreiro ergueu-se
assustado e olhou para a esposa. Ela o fitava com os olhos tranqüilos. Berforam
já ia abraçá-la quando notou que havia algo de errado naquele olhar. Aquela não
era Celiene. Ele não sentia mais a compreensão, o amor e a simplicidade. O
brilho daqueles olhos tinha amor e compreensão, mas também uma sabedoria quase
infinita.
- Você não é Celiene - o elfo disse, já sabendo quem
habitava o corpo de sua esposa. E não precisou olhar para saber que os
ferimentos haviam desaparecido.
- Trate-me como sua esposa. Transforme sua fé em puro amor,
Berforam. É só isso que eu quero - ela disse, com uma voz suave e materna.
Percebendo que não deveria falar daquele modo, alterou seu tom, deixando-o
sedutor e apaixonado.
Berforam não sabia o que dizer. Ele a olhou e soube que
Celiene estava ali, de algum modo. Todos os elfos se unem a Glórienn depois da
morte.
*****
Khinlanas ordenou que Berforam voltasse para casa assim que
soube do acidente com Celiene. O líder das Espadas de Glórienn reportou
pessoalmente ao rei tudo o que acontecera e dera todas as suas opiniões sobre
as decisões a serem tomadas. Ele passou
horas conversando com o conselho, tentando convencê-los de que algo estava
sendo tramado entre os goblinóides. E também afirmou que aquela tempestade não
fora comum. De nada adiantou. Eles apenas responderam que analisariam o
relatório e pensariam no assunto.
Berforam saiu contrariado da reunião. O guerreiro queria que
Lenórien tomasse alguma atitude e pensou em pressionar o rei, porém os
acontecimentos recentes o deixaram abalado e ao mesmo tempo seguro de que uma
atitude imediata não seria necessária. Nervoso, pensava que os elfos precisavam
eliminar os malditos goblinóides de uma vez só. Resolveu se sentar em um dos
jardins do castelo para tentar se acalmar. Não queria encontrar sua esposa e
filhos naquele estado. Acomodou-se diante de uma fileira de Orquídeas do Dragão
e percebeu que, sem querer, havia chegado ao jardim da Casa Zafirah. Toda casa
nobre tinha o direito de cuidar de um dos belos canteiros em volta do castelo
real. Era um símbolo de status e uma grande competição para os nobres. De fato,
os jardins eram lindos, obras primas criadas por jardineiros, magos e
sacerdotes especializados na arte de aproveitar a máxima beleza das plantas.
Observou as grandes torres espalhas pela cidade. Todas eram
claras e refletiam a luz solar para as inúmeras árvores que cresciam no meio
das construções. Crianças brincavam despreocupadas pertos das fontes naturais e
velhos conversavam nos bancos construídos nas gigantescas raízes.
Um elfo de longos cabelos, vestindo um simples manto marrom
e portando um cajado de madeira, se sentou a seu lado. A testa estava enrugada
e cheia de preocupação. Berforam o conhecia de outras épocas e outras batalhas.
Aquele era Razlen, sacerdote de Allihannatantala, a deusa da natureza. Ele
ajudara os Espadas de Glórienn em várias missões que envolviam procurar por
inimigos nas matas do reino.
- Acredito que tem a mesma preocupação que eu, guerreiro da
fé - Razlen disse, com uma voz suave, que lembrava mais o canto de um pássaro.
- Sim. Nossos inimigos estão tramando algo. Devemos marchar
logo para destruí-los - Berforam disse, batendo o punho fechado na palma da mão
esquerda.
- Não resolveremos essa situação assim - Razlen respondeu,
como se estivesse cansado de ouvir aquela frase.
- Como não? Temos Glórienn do nosso lado - o guerreiro
disse, segurando o símbolo da deusa.
Eles também têm seus deuses, Razlen pensou. Só que achou
melhor não falar nada. Não adiantaria. A fé de Berforam estava mesclada com a
arrogância natural da raça élfica. O druida apenas ficou calado e olhou para as
árvores, como que pedindo ajuda a sua deusa. Porém, o próprio Razlen
desconhecia o motivo do abalamento psicológico de Berforam. Não sabia o tumulto
que devorava o coração do elfo, com aquela mistura de fé, amor, orgulho, desejo
e devoção. Era preciso ser mais do que um guerreiro, mais do que mortal para
lidar com tantos sentimentos de uma vez só.
- Pelo menos você sabe que Lenórien deve agir rapidamente
para evitar um desastre - Razlen disse. Então o druida se levantou tentando
controlar sua própria impaciência.
Berforam não o impediu de ir embora. Os dois nem se
despediram. O guerreiro ainda ficou um tempo parado, pensando na própria vida,
tentando esquecer os problemas. Então se levantou e tomou o rumo de casa.
*****
Berforam ficou em Remnora durante um mês juntamente com sua
família. Apenas Rel´Keram não estava lá. Ele e Khessarel ficaram encarregados
de comandar o posto de vigilância que fora reconstruído. Antes era a primeira
defesa da cidade de Lizessir, agora defenderia toda a nação, sendo uma das
principais bases do exército.
Aquele só não foi o mês mais feliz da vida de Berforam
porque às vezes ele não conseguia enxergar Celiene apenas como sua esposa. Ela
era mais do que elfa, era a essência élfica encarnada diante dos olhos do
guerreiro. Os momentos na cama eram uma mistura de orgulho e sacrilégio para o
guerreiro, sentimentos que desapareciam durante o prazer e voltavam quando
sentia o calor dela em seus braços e nada tinha além do silêncio e as luzes
apagadas como companhia. Não havia mais aquela mulher que era igual a ele para
sentir seu desabafo e compartilhar fraquezas. Agora era outra... uma estranha
que, ao mesmo tempo, era mais do que familiar. Era seu sangue e sua companhia
na vida e na morte.
Às vezes agia como uma deusa, exigindo atenção constante e
tratava os filhos da mesma maneira. Para a antiga Celiene, cada um deles era
único e merecia um tratamento diferente. O tom de voz da mãe mudava de acordo
com o filho com quem falava. Aquela elfa que agora segurava Talim, de apenas
três anos de idade, via as crianças apenas como uma professora que cuida de
seus alunos no jardim de infância. Estava sempre preocupada e queria agradar,
tratando todos muito bem. Mas faltava algo, talvez a mortalidade ou o fato de
ter concebido.
Talvez o segundo problema pudesse ser resolvido já que
Celiene estava grávida. E seu sorriso mudara desde então. Estava sempre mais
feliz e ansiosa, como se fosse seu maior desejo. Berforam estava orgulhoso por
ser pai mais uma vez. Ainda sim, sua mente às vezes se confundia. Quando se
deitava com aquela elfa, não sabia se realmente podia a tratar como sua esposa
ou se devia reverenciá-la.
Algumas vezes, Celiene ficava irritada ao ser tratada como
uma simples pessoa. Então mudava de idéia de repente, pedindo para que Berforam
voltasse a ser simplesmente seu marido. E ninguém entedia aquilo, pois Berforam
nunca dissera a verdade sobre o que acontecera naquela dia.
A família passava a maior parte do tempo unida. Berforam
treinava sua filha do meio, Nenianna, sendo observada atentamente por Tali e
Celiene. De vez em quando a mãe aparecia para corrigir a postura da filha ou
algum erro na defesa. Nenianna estranhava, pois nunca vira Celiene lutando. Ela
preferia apenas cuidar de seu jardim e ensinar os outros a escrever. Tinha
modos diferentes da jovem elfa que sonhava em ser uma arqueira dos Espada de
Glórienn.
Berforam se sentia aliviado por nunca ter sido corrigido
pela esposa. Mas isso não era preciso. O estilo de luta do guerreiro era quase
perfeito. Só melhoraria se ele fosse imortal. O que enchia o coração do
guerreiro de saudades era o cuidado que sua esposa tinha com sua aparência,
sempre tentando mantê-lo arrumado para as reuniões e corrigindo qualquer erro
no comportamento. Os dois se divertiam muito quando conversavam sobre isso.
*****
A paz de Berforam terminou assim que Khessarel avistou um
exército de goblinóides se aproximando do posto de vigilância, agora chamado de
Primeira Barreira da Eternidade. O guerreiro montou em seu cavalo e correu para
tomar sua posição, deixando a família em Lizessir. Ao mesmo tempo, ele mandou
as Espadas de Glórienn se espalharem por todas as cidades do reino e montou um
posto especial de proteção em Remnora. O guerreiro sabia que aquele não era o
exército completo dos goblinóides. Havia mais daqueles seres vis vindo de todas
as direções.
A Primeira Barreira da Eternidade deveria atrasar aquele
exército para que Lizessir pudesse se proteger. A batalha seria difícil, mas os
guerreiros estavam preparados.
Lissinim estava mais agitada do que nunca. Ela correu até
Rel´Keram com o coração batendo forte no peito. Seu amado estava conversando
com Khessarel, o que a fez hesitar antes de se aproximar. A jovem elfa não
gostava muito do mago, principalmente porque ele não era um homem de fé. Tinha
mais crença em sua magia do que na Deusa. E sempre havia aqueles resmungos
malditos que ela nunca entendia.
- Rel´Keram, prepare-se para a primeira das piores batalhas
de sua vida - o mago disse. Esse era outro costume que irritava a sacerdotisa.
Antes que de qualquer luta, Khessarel insistia em dizer essa frase.
- Nós venceremos com a ajuda de Glórienn - Lissinim
comentou, tentando provocar.
- Lissinim, prepare-se para a primeira das piores batalhas
de sua vida – Khessarel resmungou. O sorriso de vitória no rosto de Lissinim
desapareceu imediatamente. Ela nunca conseguia irritar o mago. E seus resmungos
nem sempre significavam irritação.
Uma discussão estava para se iniciar quando se deu o sinal
para todos tomarem seus postos. A batalha estava para se iniciar. Arcos e
flechas foram preparados. Espadas foram sacadas. Armaduras foram ajeitadas no
corpo. As últimas preces foram feitas.
Lissinim acabara de abençoar os guerreiros quando ouviu os
barulhos dos tambores do exército goblinóide. Eram assustadores. Seu coração
parou por um momento quando olhou para o horizonte. Ela nunca vira tantos hobgoblins
e bugbears juntos. Sua marcha levantava uma enorme nuvem de poeira que quase
tomava a forma da alma de Ragnar. Por pouco a jovem não duvidou de sua fé e da
vitória. Ela correu para Rel´Keram e o abraçou pela última vez. Os dois se
beijaram sem dar atenção para o resmungo de Khessarel.
Berforam esperou o beijo acabar para chamar o filho. Os dois
desceram imediatamente e ficaram esperando pelo momento certo para os portões
serem abertos e a batalha começar. Dessa vez, eles não esperariam as gigantescas
pedras quebrarem os muros. Enquanto as flechas matavam os inimigos da tropa de
frente, os elfos sairiam de sua base para enfrentar os inimigos cara a cara.
Nenhum dos guerreiros da Espada de Glórienn duvidou da
vitória naquele dia. Eles só não sabiam qual seria o preço dessa vitória.
Enquanto rezavam para a Deusa, pediam proteção para suas famílias e longa vida
para o reino.
Khessarel se aproximou de Berforam pouco antes da luta
começar.
- Desculpe-me questioná-lo, mas somos amigos há muito tempo.
Você não acha que deveríamos recuar e enfrentar esse exército juntamente com os
soldados que estão em Lizessir? - o mago perguntou.
- Não, precisamos atrasá-los. Essa foi a ordem de Khinlanas.
E você não precisa se preocupar. Glórienn está protegendo nossas famílias. Não
vamos falhar aqui. E se perdermos, a Deusa ainda estará lá. Ela não deixará
ninguém chegar a Remnora - Berforam falou, com os olhos cheios de fé e orgulho.
Khessarel não disse mais nada. O mago julgou que o guerreiro
soubesse de algo a mais. Talvez tivesse recebido um aviso da deusa ou um grande
grupo de sacerdotes e Espadas de Glórienn estivesse se movendo para proteger
Lizessir. A cidade seria a última barreira antes da capital do reino élfico.
*****
A luta estava desequilibrada. Quase oito goblinóides para
cada elfo. Não fosse pelas estratégias de luta de Berforam e pelo poder das
Espadas de Glórienn a derrota ocorreria em pouco tempo. Mas eles resistiram com
todas as suas forças. Sua fé era inabalável.
Berforam ergueu Enanquessir para matar mais um hobgoblin e
voltou-se para os elfos que o acompanhavam para gritar mais uma ordem. Quando
foram cercados no meio do campo de batalha, eram um grupo de oito, agora só restavam
Rel´Keram e mais dois Espadas de Glórienn. O guerreiro olhou para todos os
lados e viu que o mesmo estava acontecendo com outros grupos.
- Precisamos nos reunir novamente - ele gritou e mandou uma
mensagem mágica para todos os Espadas de Glórienn. Sempre havia pelo menos um
desses guerreiros sagrados liderando um destacamento. - Eles conseguiram nos
separar. Perderam muitos soldados para isso, mas ainda há mais deles. Não
recuem. Glórienn está conosco! Lutem com fé!
A luz de sua espada brilhava cada vez mais forte, cegando os
hobgoblins que se aproximavam e criando um escudo contra qualquer flecha ou
pedra que fosse arremessada. Mais uma vez a lâmina cortou o pescoço de um
oponente. Berforam a recuou depressa para aparar o golpe de outro inimigo.
Rel´Keram estava orgulhoso do pai. Ele nunca deixava de se
impressionar ao vê-lo lutar. Seu estilo de luta era impressionante.
Praticamente perfeito. Pena que o seu não era. O jovem guerreiro esforçou o
máximo que pôde, mas Glórienn não estava disposta a ajudá-lo naquele dia. Pelo
menos foi o que pensou quando sentiu a lâmina enferrujada de um bugbear
penetrar em seu peito. Não teve tempo de se despedir de seu pai.
Berforam mal pôde se conter quando viu o filho cair. Ele
entrou em um estado de fúria incontrolável. Enanquessir aparou a espada do
bugbear e a partiu ao meio. O monstro nem teve tempo de se surpreender. Os
ataques que o mataram em seguida foram tão rápidos que ele nem teve tempo de um
grito de dor. Enanquessir cortou o peito duas vezes e depois decepou a cabeça
do adversário. Foi um momento raro, pois o general élfico raramente
desperdiçava golpes. Não precisava de mais do que um para acabar com um
goblinóide.
A batalha terminou no fim do dia. Berforam não se lembrava
direito do que acontecera. Sabia que lutara muito e com todas as suas forças.
Seus membros ainda doíam devido ao esforço. Ele acordou coberto de sangue com
Enanquessir caída a seu lado. Corpos de elfos e goblinóides se espalhavam por
toda parte.
Demorou um pouco para o guerreiro recuperar completamente a
consciência. E ele só voltou à realidade quando sentiu alguém o levantando.
Berforam levou a mão à cintura para retirar sua adaga e atacar, ainda que o
braço doesse, cobrando o preço do esforço da batalha.
- Sou eu Khessarel - o mago gritou. Por pouco não foi morto
pelo amigo.
- O que aconteceu? - Berforam perguntou, balançando a cabeça
e começando uma prece.
- Perdemos. Fomos forçados a recuar. Eu o julguei morto, meu
amigo - Khessarel disse. O mago vira Berforam enquanto usava suas magias do
alto da murada. Nunca vira o guerreiro lutando tanto. Não duvidaria se
dissessem que cem hobgoblins morreram por sua espada naquele dia.
- Sobreviventes? - o guerreiro perguntou, interrompendo
momentaneamente sua prece.
- Poucos. Estamos nos preparando para rumar para Remnora ou
para fugir. Soubemos que algumas caravanas estão partindo de Lenórien. Elas
podem precisar de ajuda - Khessarel contou. Ele já julgara a guerra perdida. Se
as Espadas de Glórienn, lutando ao lado de Berforam com o máximo de seu poder,
não conseguiram parar os goblinóides, então nada mais deteria aquele exército.
- Ainda não perdemos, meu amigo. Glórienn está do nosso
lado. Vamos para Lizessir. Ela estará nos esperando lá para nos abençoar em
mais uma batalha - Berforam disse, tentando se manter de pé por conta própria.
A maioria dos sobreviventes da Primeira Barreira da
Eternidade pensava do mesmo modo que Khessarel, mas eles decidiram seguir
Berforam pelo respeito que tinham por seu líder. O mago também foi. Durante o
caminho, não havia nenhum sacerdote para ajudá-los. Todos haviam morrido,
inclusive Lissinim.
*****
A cidade estava queimada e completamente destruída. Os
goblinóides não pararam ali nem para saquear. Fariam isso depois, assim que
acabassem com Remnora. Era na capital que estavam escondidos os verdadeiros
tesouros.
Em Lizessir só restavam alguns goblins e hobgoblins que
queriam atormentar os sobreviventes. Berforam acabou com todos esses monstros
com a ajuda do que restara de sua companhia. O elfo lutou quase sem ânimo.
Apenas uma leve esperança de encontrar sua família movia sua espada. Quem
estava ao seu lado nem imaginava que aquele fosse Berforam Lâmina de Luz. Os
olhos aperolados quase não tinham brilho no meio daquele rosto sujo de sangue.
Quando todos os monstros foram mortos, os elfos reuniram os
sobreviventes e começaram a cremar os mortos, buscando identificá-los. Berforam
achou os corpos de seus dois filhos. Perdera toda sua família durante a
batalha. No entanto, Celiene não estava ali. Ninguém soube explicar o que
acontecera com a esposa do guerreiro.
Pela primeira vez em muitos anos, Berforam chorou. Ele
simplesmente se ajoelhou segurando os corpos frios de seus filhos e deixou as
lágrimas escorrerem pelo rosto. No início ele se culpou por não ter recuado.
Deveria ter ouvido Khessarel. Poderia ter salvado muitas vidas.
Quando se lembrou que faltava um corpo em seus braços, o
elfo se revoltou. Onde estaria Celiene? Ela deveria ter protegido sua família.
Não! Ela não deveria ter protegido apenas Talim e Nenniane? Toda Lizessir
deveria estar viva e festejando em homenagem à Deusa. No entanto, Celiene
desaparecera. Teria fugido? Estaria preparando um novo plano?
- Não se preocupe. Glórienn é sábia e acolhedora. Ela
receberá as almas de seus filhos e eles a ajudaram a defender Remnora - um
velho sacerdote disse, tocando no ombro do guerreiro.
Berforam fitou-o com os olhos cheios de raiva e fúria, sem
nem um pouco da beleza de antes. O sacerdote recuou com medo de ser atacado.
Percebendo a hesitação do elfo, o guerreiro levantou-se e levou os corpos dos
filhos para serem queimados. Pediu que alguém fizesse as preces, pois ele não
conseguia. E não foi o único a recusar-se a fazê-lo. Naquele dia, vários elfos
morreram sem terem uma prece feita por seus parentes. Cada cadáver era uma
lança de humilhação atravessando o coração orgulhoso de um filho de Glórienn.
Todos os sobreviventes de Lizessir fugiram de Lenórien
escoltados por Berforam. Durante o caminho, eles se encontraram com várias caravanas
e o guerreiro não se cansava de perguntar se haviam visto alguém com a
descrição de sua esposa. Cada vez que uma cabeça balançava ou ouvia um não, um
pouco de sua fé se esvaía.
O que restava da fé de Berforam se foi quando ele viu o
sofrimento nos olhos de seu povo. Ele vivera para amar, para ter fé e para
proteger os elfos. Perdera o amor, começava a perder a fé e não podia admitir
que ainda perderia seu povo. Olhando para as próprias mãos, viu que nelas
estava a resposta para a sobrevivência de seus pares. Os elfos precisavam de
proteção e não podiam contar com ninguém. Apenas suas espadas poderiam
defendê-los, nada mais. E aí começou a queda do mais poderoso dos guerreiros
elfos. Foi quando surgiu o primeiro elfo negro.
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