quarta-feira, 17 de abril de 2019

O Curinga do Baralho

Autor: Rafael publicado na lista Tormenta 2 de out de 2003
Uma certa noite um jovem de corpo rígido e feições reservadas entrou na taverna A Rosa e o Arbusto. 
A taverna de certo era a mais movimentada de toda a cidade de Curanmir, na costa sul do reino de Petrynia, principalmente em dias de festivais, quando a cidade era visitada por uma grande quantidade de viajantes. 

De qualquer forma, o jovem não fora atraído por festivais ou feiras de artesanatos - estava apenas de passagem; Há alguns dias atrás chegou de uma viagem pela costa do Mar Negro, e buscava agora apenas algum descanso para os dias ainda vindouros. Estava hospedado nos porões do próprio "Pugnaz", o navio o qual passara pelo menos os últimos dois meses. Mas era fato: Sempre ao cair da noite, o jovem corria para a taverna e se embebedava até o amanhecer.


- Boa noite, senhor... - disse ele ao taverneiro, que agitado com os pedidos de seus outros clientes. O homem mal respondeu à sua cordialidade, e perguntou o que o jovem desejava. - Uma cerveja. Apenas isso... - respondeu. E aguardou por alguns instantes até que o taverneiro lhe trouxesse sua bebida.

Foi quando uma chuva forte começou a banhar o solo do lado de fora; A até poucos minutos atrás, uma garoa fina cortava a noite, como vinha acontecendo nos últimos dias. O jovem recebeu sua cerveja e a entornou pela garganta, enquanto um outro homem, ensopado, que provavelmente tinha acabado de chegar na taverna, sentou-se ao seu lado no balcão.

- A chuva me pegou desprevenido... - disse o homem que trajado em uma capa escura, que por sobre encontrava-se um talismã singular de prata, que entalhado em forma de rosa. O homem virou-se ao jovem e o encarou. - Por que está triste? - perguntou.

- Não estou triste; Aborrecido... - respondeu o jovem.

- Mas não parece.

- Quem é você afinal? Porque me perturbas? - disse o jovem irritadiço.

- Desculpe-me por minha inconveniência, é que acabei de chegar à cidade, e estou em busca de pessoas para trocar algumas idéias e histórias.

- Eu que devia me desculpar. Ando fora de si nestes últimos dias... - O homem sorriu-lhe e disse que estava tudo bem. Voltou-se ao taverneiro e também lhe pediu uma cerveja. - Qual é seu problema, meu jovem? - perguntou-lhe então, alguns momentos antes de receber sua bebida. - Você se incomodaria se eu o acompanhasse na bebedeira? - o jovem respondeu-lhe que não, que poderia juntar-se a ele, e explicou-lhe o que aconteceu consigo:

- Eu acabei de atracar nos portos de Curanmir; Eu e meus companheiros e meu irmão, fomos de encontro a uma ilha, que diziam rumores, era cercada por tesouros, e como toda boa história, por monstros e armadilhas mortíferas que os guardavam. Depois de algumas semanas navegando neste mar, encontramos a tal ilha, e também o tal tesouro. Devo-lhe dizer, fiquei desapontado com o que encontramos; Apenas poucos tibares num velho baú pirata, que se divididos entre toda a tripulação não recompensaria todo o tempo gasto.

- Mas não é motivo para entristecer-se; Eu, em meus tempos de aventureiro, também muito me desapontei. - disse o homem encapuzado.

- Sim, mas não apenas por isso. Enquanto voltávamos, nossa caravela foi atacada por uma criatura marinha gigante; O barco ficou bastante danificado, metade da tripulação foi morta e devorada pela besta, e entre os inúmeros desaparecidos, estava meu irmão... Desde então resolvi largar a vida de explorador, e por muito pouco não resolvi largar toda minha vida...

- Sinto muito. - disse-lhe o homem. E um silêncio triste venceu a conversa. A taverna permanecia bastante movimentada e tumultuada, mas aquele silêncio parecia onipotente entre eles. O jovem então pediu ao taverneiro mais uma cerveja, enquanto o homem voltou a lhe dizer:

- Como lhe disse, também fui um aventureiro, confiante e valente. Era um bravo guerreiro; Durante muito tempo eu viajei junto a um grupo de exploradores, mas resolvi abandona-los e permanecer apenas como um peregrino solitário. Depois de um tempo de aventuras, tudo o que você fez parece ter sido em vão, então resolvi coletar informações pelo Reinado afora, só assim poderia resguardar lembranças de tudo o que havia feito. - o homem deu uma pausa breve, terminou de tomar o restante de sua cerveja e voltou a dizer. - Eu tenho uma boa história que me aconteceu em alguns dias atrás, você gostaria de ouvi-la? Ela poderia colocar um fim em seus problemas...

- Porque não? Faltam ainda muitas horas antes do amanhecer... - disse o jovem.

- Pois então meu jovem, lhe contarei sobre o dia em que quase morri...

O homem então pigarreou, e antes que começasse seu relato, pôs sobre a mesa um velho baralho de cores vermelhas, e pediu para que ele retirasse do monte, uma carta, mas que a deixasse de ponta cabeça sobre o balcão, para que não a visse. O jovem perguntou-lhe o que isso significava, e o homem apenas explicou que seria importante para ele compreender o que aconteceu. E depois que a carta fora retirada, ele começou:

- Você já ouviu falar sobre a Maldição do Curinga do Baralho? - perguntou ele. O jovem respondeu que não, e então o homem disse: - Pois bem... Era uma noite muito parecida com esta. A chuva caía forte fora de uma velha baiúca de uma terra distante. Dentro, uma lareira aquecia os corpos das poucas pessoas que conseguiram vencer o sono. Numa rústica mesa num canto do estabelecimento, estavam o sr. Jinglles, o sr. Nomadan e o sr. Landher. Eles estavam tomando um chá de ervas da mata, apenas para aquecer a garganta. O sr.Jinglles era um aprendiz de ferreiro, e começaria seu primeiro trabalho na ferraria de seu tio no dia seguinte. Ele era muito pobre, mas muito feliz; Nomadan era um bardo, um artista popular de sua terra, um célebre ex-aventureiro em busca de conhecimentos. Ele carregava um belo semblante em seu pescoço, que esculpido na forma de uma rosa de prata.

- Você? - objetou o jovem. Mas o homem continuou seu relato sem responder à sua pergunta, mas de certo estava falando de si mesmo.

- Landher era um homem forte, cheio de vigor, mas não tão popular quanto seu companheiro bardo. - disse o homem. - Enquanto conversavam, Landher retirou um baralho de seus bolsos e pediu a seus dois companheiros para que escolhessem uma carta do monte. Os outros dois aceitaram suas palavras, e cada um retirou uma carta daquele baralho.

"Virem-na. Coloque-as sobre a mesa", disse ele. Jinglles conseguiu um "Dez de Copas", enquanto Nomadan conseguiu um "Às de Ouros". Landher então lhes disse algo sobre uma maldição antiga, nomeada como a Maldição do Curinga do Baralho. Para ele, a maldição pertencia ao deus Nimb, o deus da sorte e do azar. Ele contou-lhes que neste baralho existiam apenas naipes vermelhos, e um único curinga. Ele também falou que a partir do momento em que a carta fora retirada do baralho, suas vidas tomaram um novo rumo, um rumo bem mais curto. Os outros riram e gostaram da brincadeira, até quando o terceiro se levantou, sereno, e lhes disse que não era uma gozação, era um destino. Ele deu dois passos para trás e disse que voltaria algum dia para buscar suas cartas, e deixou a baiúca rapidamente. Sr. Jinglles e o sr. Nomadan nada compreenderam, e realmente não fizeram questão nenhuma de entender; Eles prosseguiram pela noite conversando até quando a manhã surgiu. Depois de algumas horas, era certo que aquela "brincadeira" imposta por Landher já havia sido esquecida pelos dois, e assim prosseguiu por dois dias.

- Na noite do terceiro dia, o sr. Nomadan aguardava sozinho na mesma mesa daquela noite, na mesma baiúca. Ele agora tomava uma cerveja, e aguardava a chegada de Jinglles. Ali ele permaneceu durante duas horas. Havia bebido mais do que deveria, e preocupou-se com seu companheiro que outrora sempre pontual. Quando da portinhola do estabelecimento, surgiu um homem agitado, aflito e aparentemente sorumbático. Este era o tio ferreiro de Jinglles, procurando por Nomadan. Algo triste havia acontecido: seu companheiro estava morto em seu próprio aposento, talvez vítima de assassinato. Sr. Laer, o tio, conduziu Nomadan à sua casa, e o levou até os andares superiores, onde se encontrava o quarto do antigo companheiro. Quando lá chegou, encontrou o corpo de seu amigo jogado ao chão, sobre o tapete, ao lado de sua cama; Provavelmente havia sido derrubado enquanto dormia. Nomadan procurou vestígios do que poderia ter acontecido, e acabou por descobrir que ele havia sido morto há bastante tempo, talvez ao amanhecer deste mesmo dia, e que provavelmente fora morto enquanto seu sono. Nomadan também se deparou com algo que lhe fez tremer, e imaginar o pior: No peito exposto do cadáver, uma adaga encravada, e não apenas isso. Com seu sangue, que inevitavelmente banhando o tapete, um lembrete fora rabiscado na altura de sua barriga, pouco abaixo do ferimento que fatal. Com uma caligrafia pecaminosa, estava escrito:
 "Depois do Dez de Copas, o Às de Ouros...". Ele procurou pela carta que Landher havia lhe dado, mas não a encontrou em lugar algum do aposento; Provavelmente já deveria estar nas mãos de seu dono. Colocou então sua mão em seu próprio bolso, e catou a carta que recebeu e a segurou. Em sua cabeça, persistiu o pensamento de que agora corria perigo de vida.

- Dois dias mais haviam se passado. Nomadan recorreu à guarda da cidade, mas não havia provas de que sua história era verídica. Nas duas noites de pouco sono que tivera, não conseguiu livrar seus pensamentos da carta que lhe pertencia. Ele tornou-se cada vez mais aflito, e mais frenético. Até a noite do terceiro dia.

- Naquela madrugada, ele pouco conseguiu comer, e não deixou os limites de seu lar. Ele já estava ouvindo coisas e vendo coisas que realmente não existiam; Estava apavorado com o que poderia lhe acontecer. Em certo momento, estava em frente à sua lareira, pensativo, quando ouviu passos do lado de fora de sua casa. Com um salto se pôs de pé, e com um movimento inusitado estava protegido detrás de sua poltrona, de costas para o lume da lareira. Ele observou atento aos movimentos pelas janelas, e imaginou ter visto uma sombra que passou batida; Então tremeu.

"Quem está aí?", perguntou ele, em vão. Não houve respostas. A casa estava completamente silenciosa, salve o som da lenha em chamas. Repentinamente, a porta à sua frente se abriu, lentamente, talvez por obra de algum vento saliente, ou talvez não. Mas o sr. Nomadan novamente se apavorou. Ele estava com a carta nas mãos neste momento, e quando uma silhueta humanóide surgiu frente à porta, o homem sabia que era Landher, vindo cumprir o que prometido. E realmente era ele. Ele deu alguns passos para dentro da casa e sorriu para o sr. Nomadan. Apavorado, o homem jogou a carta em direção ao invasor, e lhe disse:
"Aqui está ela... Agora vá embora, você não é bem vindo em meu lar".
Landher então lhe respondeu:
"O que adianta tê-la, se você já a viu?", e saltou por cima da poltrona, derrubando o outro homem no chão. Nomadan vacilou, e só então percebeu que o invasor carregava uma adaga de lâmina afiada nas mãos, mas agora já estava encurralado, e pouco podia fazer.
"Porque? Porque você tem que me matar?", perguntou o pobre coitado.
"Tudo por causa desta maldição...".
"Mas porque?", insistiu.
"Já que você tem que morrer, vou lhe contar o que acontece: Em uma aventura antiga, eu encontrei este baralho e seu manual. Quando li o manual, a maldição então foi lançada, e eu sabia disso. Acontece que o baralho me obrigou a usa-lo, ou minha morte se daria. Pois então dizia no manual: Uma carta por alguém deve ser retirada. Se a carta não for o Curinga, esta pessoa deverá ser morta, ou você morrerá. Caso contrário, se a carta escolhida for o Curinga, a Maldição será passada à diante, e aquele que a tirou deverá continuar usando o baralho até que a Maldição seja repassada, e aquele que outrora foi o Jogador, estará livre da Maldição".
"E não há alguma forma de reverter essa maldição sem que ela seja repassada?", perguntou Nomadan.
"Creio que não", respondeu. Sr. Nomadan permaneceu por alguns instantes buscando em seus pensamentos alguma forma de acabar com a maldição, e finalmente, antes que o outro homem o atravessasse com a adaga, achou uma solução que talvez única: destruir a carta.

Sr. Nomadan então se esquivou do golpe e por pouco não foi atingido, se arrastou por entre os cômodos e catou a carta que outrora jogada ao chão. Com ela nas mãos, ele disse que ia pôr um fim de uma vez por todas nesta maldição estúpida. Landher manteve-se resoluto em suas ações, mas apenas até o sr. Nomadan catar um lampião que próximo e aponta-lo para a carta.
"Vamos ver o que acontecerá então com seu joguinho maléfico...", disse.
Ele acendeu a lamparina e viu Landher tornar-se aflito e inseguro. Parecia que era mesmo a forma de se acabar com a Maldição. Landher ainda gritou por misericórdia, mas a carta em chamas foi destruída rapidamente. Depois de alguns instantes, o assassino se contorceu de dor, e tombou ao chão, imóvel. A maldição estava então, quebrada...

Isso era o que o pobre sr. Nomadan imaginou. Mas a Maldição de forma alguma pode ser quebrada, como os dois homens naquele aposento vieram a descobrir. A carta havia voltado ao baralho, e estava intocada. Sr. Landher se levantou furioso, vivaz como nunca, talvez ainda mais poderoso. Nomadan pouco pôde fazer além de esperar pela morte que aconteceu instantes depois, com uma punhalada fatal.

-Mas eu pensei que você fosse o sr. Nomadan... - o jovem então se tornou aflito, e incrédulo, pois sem saber, havia entrado em seu jogo maligno. - Você é o sr. Landher... - afirmou. - Mas... - vacilou, apontando para o colar de prata que fora mencionado. O homem apenas sorriu, e disse que o defunto não iria precisar dele. Ele então catou a carta que outrora escolhida pelo jovem, que largada sobre o balcão. A observou por alguns momentos e lhe disse:

- Você já matou alguém inocente, meu jovem?

- Não... - respondeu ele, desconfiado.

- Pois então é melhor se acostumar com a idéia... - E o homem revelou a carta que o jovem havia escolhido: Era o Curinga do Baralho...

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