sexta-feira, 4 de fevereiro de 2011

Hayabusa O ronin, Capítulo VIII


Tamura, 10 anos atrás, Cidadela Imperial.
Os preparativos estavam sendo concluídos. Pela marcação de tempo por bastões de incenso, passavam das oito horas da noite. Pela noção de tempo dos sobreviventes, séculos de trevas se passaram desde a última vez em que o sol fora visto. A única cor no céu era o vermelho sangue que, naquele momento, brilhava com luz mortiça e âmbar.
Todos os refugiados que, por ventura, estava em outras partes do palácio, foram deslocados para a Cidadela. Os samurais da Guarda Imperial foram ordenados a formar um anel de proteção que abrangesse toda a Cidadela e mais uma área dos jardins do Palácio com uma edícula que servia de parlatório quando havia a necessidade.
Tudo o que seria transportado estava reunido em uma pequena área. Seriam alguns prédios pequenos, as pessoas e seus pertences, um pedaço dos Jardins Imperiais e a pequena Torre com sua edícula. Os samurais e magos informavam à população quais seriam os procedimentos a serem tomados e o que deveria acontecer. Para todos os efeitos, ninguém deveria saber que havia uma grande chance de falha. A confiança na pessoa do Imperador de Jade em suas decisões deveria ser total, já que aquela era uma variável que também contaria para o efeito final.
Pessoas procuravam-se umas as outras e famílias tentavam se reencontrar perto do fim. O choro e a dor da perda de pessoas queridas eram maiores do que a dor das amputações e das queimaduras nos corpos. Algumas dezenas de casamentos foram realizadas, arranjados e consumados naquele espaço pequeno da cidadela. O ritmo da vida se acelerava na medida em que a apreensão e a tensão pelo que viria aumentava. Naquele espaço pequeno, todo o formal protocolo Tamurano se quebrava. Cada um aproveitava seus momentos finais de espera. As crianças que nasceram nove meses depois daquele fato foram chamadas, nos anos seguintes, de filhos das lágrimas.
Órfãos choravam por conta dos pais que haviam ido embora. Pais choravam pela morte tão prematura de seus filhos. Maridos buscavam esposas mortas e esposas vestiam o silêncio do luto. Sexo era feito nos cantos mais afastados ou sob a proteção de carroças de feridos. Restos de famílias se consolavam com pesar, sentindo que a alegria e o alivio que tinham ao se reencontrar ali, naquele pátio, era algo deslocado demais para se sentir e demonstrar. Mas todos tentavam se confortar de alguma forma.
Desconhecidos abraçavam-se na esperança de fazer a dor passar pelo menos um pouquinho, e qualquer sucesso era muito frente à tragédia. Yoshi via aquela desolação com os olhos de quem descobrira que não havia visto, realmente, de tudo na vida. Parte do que aquelas pessoas sentiam, ele próprio sentira quando da morte de sua esposa, Mitiko, no parto de Ti-Neh. Sua mente, por um segundo voou pelo tempo.
Havia sido uma gravidez difícil. Com sangramentos e dores pelo corpo, Mitiko havia lutado durante quase nove meses para segurar a criança no ventre. Por isso Yoshi soube imediatamente, quando os clérigos e curandeiros o chamaram para uma conversa antes do trabalho de parto, que algo estava muito errado.
Os homens de cura foram categóricos em afirmar que, naquela situação, não havia condições de salvar as duas vidas e que Yoshi-sama deveria escolher entre a esposa amada e a filha esperada.
A decisão deveria ser tomada em poucos minutos por que, em caso de demora, os dois seriam perdidos. Yoshi se viu frente a uma situação na qual não poderia decidir pela lâmina. Anjih fora enviado para a casa de Toranaga, para que não visse e nem se envolvesse com a situação. Ainda era muito novo para compreender algumas coisas.
O amor que sentia por aquela mulher, tão frágil em toda a sua beleza, não tinha limites. Se alguma coisa o motivava a manter-se são, mesmo em meio a um mundo cada vez mais louco e menos harmonioso, era Mitiko. E aqueles homens vieram lhe dizer que deveria escolher entre a vida de sua mulher e a vida de sua filha...!?
Os pensamentos do samurai transitavam entre uma possibilidade e outra. Não queria perder a esposa que tanto amava e mesmo assim não queria que a filha tão esperada se fosse. O torvelinho que era a sua cabeça se tornava mais e mais veloz... Até que um dos médicos foi chamá-lo. Sua esposa queria vê-lo.
Quando entrou no quarto e a viu deitada no tatame de dormir, pálida como o mármore e com olheiras grandes como se estivesse sofrendo a séculos, virou o rosto para o lado esquerdo. Não queria parecer fraco diante de uma mulher que o mostrara a real fortaleza.
Ela o chamou para perto de si. Ao lado de onde estava deitada, panos mergulhados em bacias com água morna e outras com água quente. Lençóis de seda manchados de sangue a um canto mais afastado. Seu ventre volumoso estava escondido pelo cobertor leve que usava.
Ela tinha sido avisada pelos doutores. Sabia da situação em que se encontrava. Seu dever de samurai era servir ao seu senhor, seu marido, e lhe dar a paz necessária para que pudesse viver. A servidão estava em seu sangue bem como de todos os samurais do reino.
Por causa disso, Mitiko chamara Yoshi ao quarto. Por causa de seu amor e de seu dever para com Yoshi-sama, seu senhor, e para com a pequena menina que mal carregava no ventre. Tomara uma decisão e desejava comunicá-la.
Escolhera a vida...
Com um aceno de cabeça, Yoshi espantou as lembranças ruins. Já bastava o presente difícil para se entristecer. O plano estava sendo seguido à risca. Assim que os magos reais dessem as ordens, todos os pouco mais de 8.000 homens encarregados da proteção à fuga deveriam se dirigir às estradas da Cidadela Imperial. Uma vez lá posicionados, deveriam formar uma barreira para que nenhum dos demônios chegasse à população. Caso isso ocorresse, a própria população tentará a todo curso mantê-los em Tamura.
O perigo de um dos demônios de pesadelo que fosse, solto durante a travessia ou então quando chegassem ao destino era incalculável. Não se sabia a natureza deles, como se reproduziam, qual o interesse deles ou mesmo o objetivo. Suas ações pareciam ser coordenadas, como se uma inteligência única estivesse por trás dos movimentos e ataques.
A Tempestade chegara primeira, em forma de nuvens cor de sangue e ferrugem. Com a queda de chuva ácida e a chegada de gases venenosos começa a carnificina. Junto às primeiras gotas, aqueles demônios menores iniciavam seus ataques, seguidos por demônios cada vez maiores e mais mortais. Se não parecesse tão inacreditável. Os ataques pareciam com as manobras de ataque e tomada de uma cidade por um exército bem comandado.
De qualquer forma não poderia se dar ao luxo de permitir que nem mesmo um dos demônios escapasse e chegasse a um centro humano como Valkaria. Se ele se reproduzisse, ou mesmo se chamasse outros de sua espécie, ou pudesse atrair aquela tempestade rubra... Seria perigoso demais.
Não. Isso não aconteceria. Por tudo o que havia de mais sagrado em seu coração de samurai e pai, Yoshi não poderia permitir aquilo. Conformado com o pouco que poderia armar de esquema defensivo eficiente, o Comandante da outrora Guarda Imperial se dirigiu à ao local onde o Capitão Toranaga estava dando as últimas instruções a seus homens.
Toranaga quase encerrara sua preparação e de seus homens para o combate sem chance de sobrevivência. A vitória seria gozada pelos sobreviventes que porventura chegassem ao destino final.
Yoshi se aproximou silenciosamente do grupo de soldados que ouviam as últimas orientações de seu capitão. Os seus rostos mostravam um altruísmo que orgulhou o Comandante. Apesar de seus corpos denunciarem nervosismo com o abrir e fechar de mãos sobre o cabo das espadas, seus rostos estavam serenos e tranqüilos. Esperou que Toranaga terminasse a preleção e o chamou para um canto em separado. Precisava dar a última ordem ao seu melhor soldado e pedir o último favor ao seu melhor amigo.
Entraram em uma das pequenas lojas da cidadela, que devia ter vendido tecidos. Estava com suas prateleiras vazias. Ou o dono retirara o seu estoque ou havia sido saqueada pela população que fora chegando à Cidadela. Não culparia a ninguém nesse caso, visto que precisariam de recursos para se estabelecer no destino. Permaneceram alguns minutos lá dentro. Quando de lá saíram, Toranaga estava carregando as espadas de Yoshi, além das suas próprias. Seu rosto estava vermelho como seus olhos. Foi na direção do "ponto de saída" dos refugiados. Seu passo era rápido e seu olhar estava perdido no chão. Yoshi ficou parado na porta da loja por alguns segundos olhando aquele homem que se afastava. Sentia pena e, ao mesmo tempo, alívio. "Agora vem o mais difícil", pensou Yoshi, dirigindo-se a enfermaria improvisada onde estavam seus filhos.


Petrynia, tempos atuais, a dois dias de Malpetryn.

Hayabusa era um homem de palavra e, como tal, cumpria a todas as suas promessas. Não era por ser um Ronin que desprezaria as regras de conduta moral que seu pai e Toranaga-sama o ensinaram. Pensara durante boa parte da madrugada em como fazer para não perder Akukama de vista na sua viagem. A maioria dos fatos que este lhe contara confirmava as informações de Toranaga-sama. Mas percebia ao mesmo tempo em que algo era escondido pelo homem que fora contratado para ser seu executor.
Como se escondesse algo. O rio da verdade saia de sua boca quando falava, mas este rio só chegava aos ouvidos de Hayabusa depois de desviar de algumas pedras que desconhecia.
Faltavam pedaços de informação. Quando Akukama acordou, viu o samurai imóvel em posição de lótus, com os olhos fechados. Parecia estar meditando e Akukama se lembrou, nostálgico, do tempo em que ele mesmo fazia isso. De um tempo em que não pensava no quanto Lin-Wuh ficaria furioso em vê-lo cometer tal ofensa.
Balançou o braço direito levemente e percebeu que este não estava mais doendo. O calor que sentira na noite anterior diminuiria e era quase imperceptível. Ao abaixar a manga da túnica viu que o ferimento estava cicatrizado e uma camada de pele nova formava uma cicatriz nítida, em forma de "x".
Seu ombro estava curado.
Hayabusa se mexeu e saiu da posição de meditação em que estava. Para um Iniciado de Lin-Wuh, a meditação era uma obrigação. Estar em paz consigo mesmo era tão importante quanto estar em paz com os outros. No começo meditava apenas por dever, mas com o tempo, o prazer da comunhão, consigo mesmo e com o seu Deus conseguia a façanha de mantê-lo são e ativo para cumprir o seu juramento.
Precisava ouvir a voz do Deus Dragão em seu interior. Além disso, sem essa voz em seus dias, perderia as dádivas que permitiam que cuidasse
do seu povo.
Hayabusa esticou as pernas, sentado mesmo como estava, e se levantou. Retirou a esteira que usou como apoio limpo e o enrolou, amarrando-o com uma pequena faixa de linho branco. Com um suspiro grande, se dirigiu ao seu cavalo, que pastava junto aos outros quatro que haviam trazido os bandidos. Prendeu a esteira atrás da sela e, apanhando as espadas que retirara dos mortos e de Akukama, se voltou e andou na direção de seu prisioneiro.
-- Um bom dia, Akukama-sam. Teve algum problema durante a noite? -- perguntou o ronin, sentando-se dois passos à frente de Akukama.
-- Não acordei a noite toda, Hayabusa-sam. Dormi como uma pedra. Sem sonhos.
-- E o ombro?
--Veja só... -- mostrou o ombro descoberto -- o ferimento se fechou durante a noite. O que é isso que me deu?
-- Um bom remédio... -- cortou o assunto para abordar o que queria, direto e afiado com a flecha da noite anterior -- Mas me diga... Quem forneceu essas armas?
Akukama encarou o samurai. Queria que esse percebesse que falaria a verdade. O ronin foi direto a pergunta, sem nenhum tipo de rodeio... Logo quereria a verdade sem nenhum empecilho.
-- Quando Hector me contatou, deixou bem claro que queria que parecesse um crime de ninjas, comum a nossa comunidade... Queria que a sua morte parecesse fruto da rixa eterna entre ninjas e samurais, para que dúvidas não fossem levantadas.
Aqueles que ouviam falar pela primeira vez de ninjas e samurais pensavam que era a mesma coisa. Guerreiros Tamuranos que usavam espadas Tamuranas e gostavam de matar. Na verdade, as duas definições eram tão diferentes entre si quanto o são um pintor e um escultor. Enquanto que os samurais eram uma casta guerreira que se dedicava a servir ao seu senhor em qualquer ocasião, não se importando ganhos materiais, mas com o dever praticado. Os ninjas eram clãs de guerreiros de infiltração mercenários que vendiam seus serviços a quem pagasse mais.
Os Samurais eram servidores em essência. Gerações inteiras ostentavam o compromisso de servir como guerreiros de uma única família. Possuíam um código rígido de conduta, o bushido (caminho do guerreiro) que seguiam a qualquer custo. A honra era o seu mote e a guerra o seu caminho. Eram versados em artes diferentes do Kenjiutso, como a escrita, a poesia e o canto. Eram treinados para serem companheiros ideais de seus senhores.
Os Ninjas eram clãs de assassinos treinados para serem os espiões perfeitos. Matar sem que a vítima saiba. Entrar e sair de onde quer que seja a qualquer hora do dia e da noite (principalmente da noite). Mercenários, ninjas eram contratados por qualquer um que queira (e possa) pagar o seu preço. Seus códigos de honra eram complicados mesmos para eles. As sombras eram o seu refúgio e a morte o seu presente.
Os Samurais eram versados em quatro armas, consideradas as mais honradas: a espada, o arco daikyu, a lança e a shorizen, uma espécie de foice curta com uma corrente e um contra peso na outra extremidade. Seu método de luta desarmado era baseado também no uso de espada. Movimentos que voltavam a força do adversário contra ele mesmo. Ninjas eram treinados para usar qualquer tipo de arma Tamurana, utilizando qualquer método para executar um serviço, de veneno a armas e técnicas covardes. Suas armas mais usadas, no entanto, eram os ninja-to (pequena espada reta), o Nunchaku, a shuriken a as adagas-sai. Suas técnicas eram devastadoramente potentes, visando incapacitar ou matar o inimigo ao menor tempo possível e com o mínimo desperdício de movimento.
Samurais idolatravam a Lin-Wuh, e seu aspecto de servidão e justiça. Ninjas eram devotos de Lin-Kuei, o Espírito Raposa, uma das facetas de Hynnin. Essas diferenças eram tão gritantes que faziam com que samurais e ninjas se odiassem com o mais profundo de suas almas. Eram comum, quando no antigo Império, que uns acabassem matando os outros com frequência.
O problema era que, com a queda de Tamura, existiam cada vez mais
Samurais sem honra e ronins, que são os samurais sem mestre, que acabam alugando as suas espadas a quem pagar melhor. Por outro lado, existiam cada vez mais Ninjas que passaram a servir apenas uma pessoa, tendo o bushido como guia.
Hayabusa já havia lutado com ninjas antes e sabia que nem todos eram máquinas de matar a sangue frio. Pouparam alguns deles por se provarem dignos de confiança. Mesmo Toranaga passara a empregar alguns como guardas ou soldados em suas missões. Acreditava que com o fim do Império de Jade, todos mereceriam uma chance de tentar sobreviver. Mas, pelo que podia perceber, aqueles homens que tentaram atocaiá-lo não eram ninja.
-- Como sabiam que eu iria por esta rota e como me encontraram?
-- Quando Hector me contatou pela última vez, já tendo os meus finados companheiros em acerto, ele nos forneceu todas as informações que precisaríamos para encontrá-lo. Precisamos apenas seguir o roteiro que possuíamos.
Para Hayabusa, essa era uma informação alarmantemente perigosa. Se Hector foi capaz de mandar um grupo para matá-lo, Hayabusa sabia que poderiam mandar outros e outros... Ou mesmo avisar a Taupys que haveria problemas. De alguma forma a Milícia havia sido infiltrada. A Milícia de Nitamura era formada por homens e mulheres que desejavam proteger o povo de jade no fundo do coração. Os líderes eram o conselho ancião e o Daymio, chamados de “a Alma da Milícia”. Toranaga-sama era “a Mente”, como líder supremo da milícia e chefe de operações. Só prestava contas á Alma, que o tinha em muito apreço.
A maior parte dos membros da milícia, no entanto, era responsável pela avaliação de informações, triagem de dados, patrulhamento de ruas do Bairro, bem como defesa dos cidadãos contra ameaças (internas ou externas). Eram chamados e “Escudo de Tamura”. Os agentes infiltrados em cortes ou disfarçados de mercadores ou circenses espalhados por todo o reinado eram chamados simplesmente de “os Olhos” da Milícia, e formavam uma rede de espionagem útil e altamente eficiente. As fontes de informação, mesmo sendo involuntárias, eram chamadas de “os Ouvidos”, mas, por via de regram, todo Tamurano podia e deveria ser fonte de informações para a Milícia, em Deheon ou além.
Os agentes especiais, responsáveis por ações de incursões, resgates, capturas e assassinatos (ás vezes é preciso cortar o mal pela raiz) eram chamados de “a Lâmina de Tamura”. Eram profissionais especializados em qualquer coisa que seja útil para as missões especiais. Por vezes eles podiam contar com “Anéis”, que eram mercenários e colaboradores, nem sempre conscientes de para quem, realmente, estavam trabalhando.
Hayabusa era uma Lâmina de Tamura. Um iniciado de Lin-Wuh, um guerreiro do Deus Dragão, responsável pela proteção do povo de Jade. Fazia parte de uma estrutura que sempre se mostrara impossível de ser vazada. Nenhum homem, que não fosse Tamurano e de confiança, tinha acesso a informações como aquela. Isso significava que a infiltração era nos círculos mais altos, próximos a Toranaga. Por que todo o histórico da missão havia sido passado por ele, diretamente. Se houvesse vazamento, a operação poderia ir por água abaixo. Mas quem, num dos círculos mais altos e com mais acesso estava passado informações?
Olhou para Akukama. A mesma sensação que sentira na noite anterior o afogou. O homem estava escondendo algo do ronin. Mas, talvez, não por que quisesse, mas por que não soubesse.
-- Mas me diga Akukama-sam... Por que entregou os seus amigos para
me ajudar? -- Hayabusa fez essa pergunta displicentemente, se levantando e indo aos restos da fogueira que apagara com o sereno, de madrugada.
Akukama abaixou os olhos. Mesmo de costas sentiu o interesse de Hayabusa na sua resposta. Percebia a tensão que o ronin tentava disfarçar com calma bem medida.
-- Eles não eram meus amigos...
--Como não? -- Mantendo-se de costas para o homem, Hayabusa preparava o bote. Devia medir com cuidado as suas palavras para que a presa caísse na armadilha antes que percebesse. -- Não viajavam juntos? Não me
emboscaram? Não foi você quem os contratou?
-- Sim... -- Akukama procurava as palavras -- eu os contratei. Os conhecia da prisão da Milícia, quando cumpri pena, há dois anos.
-- E como foi parar lá, Akukama-sam?
Os olhos do antigo guarda imperial procuravam algo que não existia. Pensava em uma saída qualquer para escapar da resposta dolorosa que seria obrigado a dar e que o faria se lembrar dela. Lembrar do dia em que...
-- Isso não importa nesse momento, Hayabusa-sama. Eu paguei a minha dívida com o povo.
-- Ah... Mas isso importa muito, Akukama-sam – Hayabusa tecia a teia, fio a fio, e colocava um pouco de mel para que presa chegasse mais perto – importa por que eu preciso saber quem é o homem que está no meu lado, quando as coisas ficarem feias... E elas vão ficar. Sei que sabe disso!
-- Mas o que um homem faz no passado – começou Akukama, pensando numa saída – pertence apenas ao passado. Eu paguei a minha dívida com o povo!
-- Mas não a sua dívida comigo! – Hayabusa encarou Akukama. Seus olhos estavam novamente reptílicos. Mais uma vez pedira benção de seu Deus – a partir desse momento, Akukama, selará um pacto comigo. Um pacto de honra, tendo Lin-Wuh como testemunha.
As palavras de Hayabusa vinham carregadas de um poder que não era humano. Mesmo o vento daquela manhã de sol parou de soprar. Os pássaros se calaram e as nuvens no céu se imobilizaram. Carregadas com um tom de poder, as palavras vinham com o poder do próprio Deus Dragão. Akukama não conseguia desviar os olhos e nem a atenção dos olhos do ronin.
-- A partir desse momento, Akukama-sam, nenhuma mentida ou meia verdade será dita por você, para mim. Nenhuma pergunta que conheça a resposta ficará sem que me diga qual é. Por que, a partir desse momento, Akukama-sam, eu o tomo sob minha proteção e faço de você, meu vassalo, até que o liberte ou que sua morte o tome de mim. Em troca, lhe ajudarei no resgate de sua filha e no que eu puder, para que não mais precise recorrer ao crime. Aceita, Akukama-sam?
-- Você está dominando a minha mente? – perguntou Akukama, desconfiado. Ainda que pudesse falar, não conseguia desviar os olhos.
-- Não, Akukama. Você é livre para responder o que seu coração disser... Não poderei forçá-lo a nada, mas terá coragem de fazer o que seu coração mandar. 
-- Então, Hayabusa-sama, eu aceito e me submeto. Por Lin-Wuh.
Mais is uma vez trovões ribombaram pelo céu limpo e azul, sinalizando a concordância do Deus.
-- Então, Akukama-sam, como minha primeira ordem, quero que me diga a verdade: como e por que foi preso?
Akukama olhava nos olhos de Hayabusa. A voz poderosa já não estava mais lá, nem os olhos reptílicos, mas a vontade ainda era suprema. Por algum motivo, não conseguiu esconder a verdade. E sentia que não precisava mais disso.
-- Eu matei a minha esposa... -- as palavras morreram na boca do homem, afogadas em uma culpa que não conseguiu conter.
Hayabusa se virou. Seus olhos e ouvidos treinados para discernir entre a mentira e a verdade notaram que aquele homem não o enganava. Viu as lágrimas e ouviu o choro em forma de relato.
-- Quando chegamos da fuga de Tamura, no local que seria chamado de Nitamura, éramos pouco mais que farrapos. Éramos sobreviventes de uma
tragédia que marcou a ferro aqueles que aqui chegaram. Eu consegui trazer
a minha esposa e a minha filha comigo. Elas estavam na Cidadela quando da magia do Imperador. Éramos das poucas famílias que conseguiram chegar ao destino final.
-- Nada conseguia apagar a imagem de milhares de pessoas morrendo e cadáveres que eu vi naquele dia. Perdi os meus amigos, os meus companheiros, perdi os meus pais, os meus irmãos... Perdi quase todos... Mas as pessoas me consideravam afortunado com o fato de que a minha esposa e minha filha conseguiram escapar e estavam comigo.
-- Não havia mais Guarda Imperial. As poucas dezenas de soldados que foram incumbidos de ir com os refugiados para protegê-los dos perigos os quais poderiam enfrentar na chegada não eram suficientes para rechaçar nenhuma ameaça de peso. Nem ao menos sabíamos para onde estávamos indo, até o momento em que chegamos.
-- Eu vi o seu pai, o Comandante Yoshi enfrentar as hordas de demônios para que pudéssemos fugir. Eu assistia enquanto quase todos os meus irmãos em armas morriam em mãos inumanas. E a tudo isso eu vi com minha esposa e minha filha ao meu lado. Assistia com a esperança de que, com elas salvas eu poderia sobreviver com vergonha de ter deixado meus companheiros lá.
Akukama se empertigou e andou em passos lentos de maneira a formar um círculo ao redor de Hayabusa. Começara, agora seria obrigado a terminar.
-- Minha filha tinha seis anos quando chegamos a Valkaria. Em algumas
semanas, a maioria de nós tentava esquecer o trauma. Mas só tentava, já que a lembrança estava bem viva em nossas mentes. Uns tinham mais sucesso que outros nessa tarefa. Parou exatamente às costas do samurai e, aproximando-se de seu ouvido sussurrou:
-- E eu, como grande soldado que fui, fiz aquilo que poderia fazer... A única coisa que poderia fazer...
Passando diretamente à frente da visão do ronin, os olhos de Akukama estavam vermelhos de cólera. E das lágrimas que teimava em não deixar cair. Suas palavras passaram a vir em torrentes, rápidas e em volume cada vez mais alta.
-- Me afogava em bebida e em brigas com qualquer um que cruzasse meu caminho, com ou sem motivos. Maltratava o mesmo povo que havia jurado proteger... Eu quebrei o meu juramento... EU QUEBREI O MEU JURAMENTO. Será que você, o grande ronin sabe o que quer dizer isso? Será que conhece o que é, para um samurai, não conseguir cumprir o que prometeu?
Hayabusa olhou nos olhos de Akukama. Via o fio de saliva que escorria do lado esquerdo da boca do prisioneiro. Conhecia bem o que ele sentia... A incapacidade de honrar a própria palavra empenhada... A dor da perda sem sentido e sem que se possa fazer nada contra.
-- Nós éramos pobres, como quase todos os que chegaram a Valkaria. Mas a maioria de nós conseguiu prosperar, usando os métodos Tamuranos de produção e comércio. Mas eu não. Eu era um soldado e lutar era a única coisa que eu sabia fazer. Não era comerciante, não era curandeiro. Nem mesmo lavrador. Só sabia lutar.
-- Como muitos de meus companheiros que chegaram, tentei proteger os refugiados através do que foi chamado de unidade avançada de proteção, esse viria, algum tempo depois, a ser a Milícia Ni-Tamurana. Contudo, não era a mesma coisa. Eu via a inveja das pessoas por que minha família estava lá. Mal sabiam eles que era justamente essa injustiça que me deixava perdido.
-- Bebia cada vez mais. Saía com companheiros que não conseguiam se adaptar também e bebíamos até o dia amanhecer, nas tavernas que prosperavam pela nossa desgraça. Bebíamos o que não possuíamos como pagar... E nos endividávamos cada vez mais.
-- Minha esposa e minha filha... Eram as únicas coisas que realmente faziam diferença para mim. Minha mulher, Onaoki sustentava os meus vícios enquanto podia. Lavava roupas para outros refugiados e servia de faxineira e arrumadeira...
Mais uma vez o ex-arqueiro da Guarda Imperial parou a sua narrativa. Tomou fôlego e continuou, olhando para o chão.
-- O último empregador dela foi um importador de Valkaria. Um homem que havia se estabelecido na cidade depois de ter sido expulso de Vectora.
-- Hector? -- perguntou o Hayabusa, mais afirmando do que perguntando.
-- Exato... Hector, o mesmo homem que montou o esquema de sequestros.
Aquilo explicava o porquê de Akukama ter sido escolhido para emboscar Hayabusa. Hector já o conhecia, e assim ficava mais fácil o contato. Mas e quanto à morte da Esposa de Akukama, Onaoki? Mais novas perguntas ocupavam os lugares daquelas que eram respondidas. No entanto, haveria tempo para isso. Por aquele dia, era suficiente.
-- Akukama-sam. Tenho uma proposta para lhe fazer. Como já deve ter percebido, não estou muito a vontade para lhe libertar. Não confio em você a ponto de lhe virar as costas -- Hayabusa falava isso com os olhos cravados nos de seu interlocutor. Percebeu a frustração e a raiva que se formavam por traz dos olhos dele. Era com isso que contava.
-- Porém não posso ignorar uma promessa feita. Por isso lhe proponho o seguinte: Como Hector deve ter marcado com vocês uma forma de ser informado do sucesso da missão. Vai mandar a confirmação de minha morte, realmente.
-- Mas... -- balbuciou Akukama-sam -- assim que ele souber vai dar a ordem para que minha filha seja levada para outro lugar... Ou que seja morta.
-- Por isso mesmo que você vai avisar que dois de seus companheiros morreram na emboscada, mas um deles sobreviveu. Mas estão feridos e irão para Malpetryn a fim de se restabelecerem. Avisará que ficará lá por duas ou três semanas e que retornará para Valkaria assim que puderem viajar.
-- Por quê? Em duas ou três semanas ele saberá que não está morto e aí mandará a ordem para sumiço da minha filha e de sua irmã. Não chegaremos a Valkaria a tempo de impedi-lo de nada. Além do mais, meus companheiros estão todos mortos...
-- Nós não iremos a Valkaria. Nós iremos para Malpetryn e de lá iremos para a Villa de Taupys. Resgataremos as duas crianças antes que Hector note o truque. Só aí, voltaremos a Valkaria. E se tudo der certo, chegaremos a tempo de fazer uma última surpresa a Hector.
-- Como assim?
-- Como lhe disse, não confio em você a ponto de deixá-lo aqui... Ainda. No entanto, essa emboscada me mostrou que não posso ter margem de erro. Mas o tomei sob minha proteção e prometi que salvaria a sua filha e vou fazer isso... Preciso de apoio de tiro e, como arqueiro, você será um excelente apoio. E eu ainda fico de olho em você. O que me diz Akukama-sam?
Os olhos de Akukama brilharam. Não conseguia acreditar naquela proposta. Poder lutar novamente, e por uma causa nobre. Talvez ainda fosse possível salvara sua honra. Em um movimento rápido, sacou da bainha a Ninja-to que Hayabusa havia lhe dado. O samurai não esboçou nenhuma reação. Contara com isso o tempo todo...
Akukama segurou na lâmina e, com a empunhadura em direção ao peito de Hayabusa, deu a espada ao Ronin. Ajoelhou-se e, com o rosto virado para baixo, disse, com toda a hombridade que pode reunir no momento:
-- Sei que não estava sob seu domínio mental, Hayabusa-sama, mas quero reiterar minha condição, de livre espontânea vontade. Aceito servi-lo com todas as minhas forças, Hayabusa-sam. Juro fazê-lo enquanto não me libertar desse juramento ou até quando morrer, em nome de Lin-Wuh. Mesmo com o céu límpido de uma linda manhã quente que se anunciava, o bosque pode ouvir a reverberação de um trovão. O Deus novamente aceitara o juramento.

Um comentário:

  1. Ângela Uzumaki05/02/2011, 18:22

    *--*
    Meus parabéns!!!! Surpreendente como sempre!! *--*

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