sábado, 14 de maio de 2011

A Última Flecha

    Autor Jaime .Quindallas. Faio
     
    Berforam
    Ele se afasta da estrada, embrenhando-se na floresta. O cansativo dia faz seu corpo clamar por descanso, mas apesar de tudo ele se sente feliz: cumpriu seus deveres perante Glórienn e para ele tudo o que importa é a satisfação de sua deusa. A floresta é antiga e nela ele se sente jovem novamente. Os frondosos galhos de uma velha árvore parecem um bom lugar para se passar a noite fria que logo virá.

    Ele se deita e começa a observar as estrelas e a se recordar das antigas canções que escutava quando criança. De repente, lhe vem à mente a sua harpa, que há tanto tempo não é tocada.

    Imediatamente ele sai em busca do instrumento, cuidadosamente guardado em sua mochila. Pouco depois em meio a escuridão da floresta, a doce e suave música irrompe, sua bela voz élfica se mistura com os sons da natureza e, enquanto canta, a brisa noturna o leva à antigas lembranças de um passado jamais esquecido.
    ·····

    Em uma noite sem lua, um elfo que um dia fora conhecido como um dos maiores servos de Glórienn adentra o acampamento de elfos sobreviventes de Lenórienn. Seu nome é Berforam, mas ele não vem sozinho: muitos que nutrem de sua mesma dor e ódio o acompanham mesmo sem saber o verdadeiro objetivo desta visita.

    - Ele não quer vê-lo Berforam! Se você e os outros que o acompanham necessitam de ajuda, faremos o que estiver dentro de nosso alcance para ajudá-los, mas ele não o receberá! - disse Belleg, um jovem Espada de Glórienn.

    - Ele não tem escolha Belleg e, a propósito, fique com isso. - disse Berforam, entregando-lhe uma espada. - Sua deusa não acredita mais que eu seja digno de usá-la, servo da traidora senhora dos elfos! - disse-lhe com sua voz carregada de malícia e seus olhos demonstrando desprezo por tudo que vem de Glórienn. E sem dizer mais qualquer palavra entrou na tenda que lhe foi proibida.

    Belleg não respondeu. Sabia que começar uma discussão não levaria a nada. Preferiu permanecer fora da tenda observando a espada que lhe foi entregue. Selledarienn era seu nome, a sagrada espada de Glórienn com a qual a deusa élfica presenteou a guerreira Ellynia, que fundou a ordem dos Espadas de Glórienn. E isso o entristeceu. Aquela arma fora forjada em uma época quando a deusa ainda era Senhora dos Elfos e uma das divindades mais poderosas dentro do Panteão, mas hoje tudo mudou, Glórienn está fraca e entristecida, e a cada dia mais e mais elfos lhe viram as costas.
    ·····

    - Eu disse que não queria vê-lo Berforam! Você é senhor de si mesmo. Se quer virar as costas para Glórienn, não serei eu a fazê-lo mudar de idéia, portanto, se veio aqui discutir isso novamente é melhor saber que perdeu seu tempo! - disse Berforegh com sua voz fraca devido à avançada idade.

    - Não sacerdote, eu não vim discutir como das outras vezes, vim atrás de respostas. – disse Berforam, com aquele estranho sorriso infeliz e malicioso - Minha mente se enche de dúvidas e, sendo você o sacerdote máximo de Glórienn, acredito que possa me ajudar, afinal, essa é uma de suas obrigações, não é?

    Berforegh permaneceu calado por alguns segundos. Olhava fixamente para os olhos de Berforam, como se estivesse tentando descobrir as intenções daquela estranha pergunta, carregada de cinismo. Até que suas palavras romperam o silêncio:

    - Eu conheço muito bem minhas obrigações, Berforam, e se você tem alguma pergunta, faça-a logo!

    - Perdoe-me se lhe ofendi sacerdote, não era minha intenção. - disse Berforam se levantando da cadeira em que estava sentado - Como eu já lhe disse, algumas questões me perturbam todos os dias desde que Lenórienn caiu. São coisas simples e sem importância.

    - Eu não sei o que você quer, Berforam, mas diga logo. Eu não tenho tempo para perder com seus cinismos. - disse Berforegh com severidade, se pondo de pé diante de Berforam.

    Berforam, por sua vez, o fitou nos olhos. Seu sorriso cínico desapareceu, dando lugar a uma expressão de desprezo e, antes que mais qualquer palavra fosse dita, Berforam golpeou o velho elfo arremessando-o contra um móvel.

    - Não me interrompa mais clérigo. Hoje você vai me escutar! - disse Berforam, quase sussurrando, enquanto andava na direção de Berforegh. - Eu disse que tinha dúvidas e você disse que as responderia, pois agora me escute!

    Berforegh se levantou com dificuldade. Mantinha a mão esquerda sobre as duas costelas quebradas tentando apaziguar a dor e, com sua mão direita, limpava o sangue que lhe escorria pelos cabelos, cegando seus olhos.

    Berforam então falou:

    - Eu lutei como um louco em nome de Glórienn e para quê? O que consegui? Meu filho morreu lutando, defendendo os ideais tolos que lhe ensinei e onde estava Glórienn quando eu implorei para que ela protegesse minha família?

    - Você está vivo, não está? - disse Berforegh após cuspir o sangue acumulado em sua boca. Aquelas palavras enfureceram Berforam. Ele saltou sobre o sacerdote e desta vez seus golpes acabaram arremessando Berforegh para fora da tenda.
    ·····

    Belleg embainhou Selledarienn. Ficar admirando belas espadas e remoendo antigas lembranças de nada vai adiantar., pensou ele, enquanto voltava pra seu posto. Mas, por mais que tentasse, não conseguia manter-se vigilante e concentrado como de costume. Todos os seus pensamentos estavam voltados para a tenda de Berforegh.

    Berforam abandonara a caravana de sobreviventes há muito tempo, depois de discutir inúmeras vezes com Berforegh. Ele fora o maior dos Espadas de Glórienn, um líder nato, adorado tanto pelos guerreiros da deusa, como pelos soldados dos exércitos élficos. Teria lutado até a morte, se Berforegh não o tivesse convencido de que Lenórienn estava perdida, e que ele deveria proteger aquela caravana de sobreviventes.

    Naquela época, o coração de Berforam ainda mantinha alguma fé em Glórienn e ele sempre havia escutado os conselhos de Berforegh, afinal de contas, ele era o sumo-sacerdote da deusa élfica e sua sabedoria era lendária. Mas não tardou para que o coração de Berforam se fechasse completamente para a deusa dos elfos. Desde então, brigas e discussões entre ele e Berforegh se tornaram cada vez mais comuns. Berforam sempre atacando e acusando Glórienn e Berforegh sempre defendendo. Até que um dia Berforam se foi, sem que ninguém notasse, e nunca mais tiveram qualquer notícia sua, até aquela noite.

    Belleg não conseguia imaginar o motivo da repentina volta de Berforam e aqueles que o acompanhavam. Estes também lhe causaram certa suspeita, pois entre eles, Belleg reconheceu alguns antigos sacerdotes e Espadas de Glórienn. O que eles pretendiam com aquela visita? Que assuntos Berforam teria para tratar com Berforegh? Essas perguntas tomavam os pensamentos de Belleg!

    Quando gritos lhe chamaram a atenção.
    ·····
    Berforam ficou parado, esperando pacientemente a total atenção do acampamento.

    Alguns elfos, que sabiam lutar e tinham coragem suficiente, tentaram ajudar Berforegh, mas um círculo formado pelos elfos que acompanhavam Berforam os impediu. Usando, inclusive, de extrema violência, pois boa parte deles eram experientes soldados.

    Berforegh respirava com dificuldade, sentia uma terrível dor em sua garganta, mas a verdade é que seu corpo inteiro estava castigado. Escutava alguns gritos e agitação, o acampamento inteiro se reunira, em volta daquela terrível cena. E isso era tudo o que Berforam queria!

    Após ouvir os gritos, Belleg correu o máximo que pode em direção as tendas. Tropeçou duas vezes em meio ao desespero, o coração parecia que iria saltar de seu peito, tamanha era aquela estranha sensação de urgência, implorava a Glórienn para que a visita de Berforam não tivesse qualquer relação com aqueles gritos, mas nisso seu coração custava a acreditar.

    A cena que Belleg viu era pior que a mais terrível de suas suspeitas. Berforam estava parado,
    diante de Berforegh. O sacerdote se encontrava de costas para Belleg, segurava o braço esquerdo, pois estava quebrado. Belleg também percebeu gotas de sangue no chão seco e grandes manchas vermelhas no manto branco. Mas não houve tempo para qualquer reação do jovem Espada de Glórienn: Mílliel, a maga, a um comando de Berforam, lançou um de seus feitiços sobre Belleg que ficou imóvel, feito uma estátua, e agora só podia ver e ouvir. O silêncio tomou conta do acampamento.

    - Tenho certeza de que todos vocês sabem quem sou eu! Vocês me conheciam como Berforam, a Lâmina de Glórienn, General dos Exércitos Élficos, Líder dos Espadas de Glórienn! - disse Berforam, um pouco mais alto que um sussurro, mas o silêncio conquistado pelo medo o fez ser ouvido claramente.

    - Hoje vocês me conhecem como Berforam, a Espada que se Partiu, o Espada de Glórienn que caiu em desgraça! Sei que muitos ainda se perguntam como alguém como eu, um dos mais fiéis devotos da deusa élfica, pôde se desviar do caminho! – disse Berforam, dessa vez um pouco mais alto e com um tom de ironia.

    - Mas hoje, essa pergunta será respondida, vocês perceberão o que eu custei a ver. Não os culpo, pois todos estávamos cegos, agíamos sem questionar, iludidos pelas palavras de uma pessoa presente aqui! - disse Berforam, dessa vez falando alto, de modo firme e autoritário, como costumava fazer quando se pronunciava para seus soldados. Pois assim era a voz de um grande líder, capaz de transformar um camponês em um bravo guerreiro.

    - Mas ele não agiu sozinho, ela, a traidora Glórienn, nos cegou desde nossa existência, sempre nos exigiu que a adorássemos, prometendo e clamando ser nossa defensora, mas na verdade, sempre foi fraca e jamais se importou conosco! Para ela, somos apenas uma bela criação, um de seus muitos caprichos! - disse Berforam começando a notar que suas palavras estavam tendo algum efeito, pois também é um dom dos grandes líderes saber o que se passa no coração de seus soldados.

    - Quem aqui não perdeu um amigo, um irmão, um filho, ou qualquer outro ente querido? Ou vocês já se esqueceram da dor e sofrimento que passamos? E onde estava Glórienn quando nossa cidade era tomada por bestas deformadas? Quando clamávamos seu nome e simplesmente éramos ignorados? Então, respondam-me? – gritou Berforam e, dessa vez, suas palavras mostraram algum efeito. Uma grande parte daqueles elfos começou a refletir sobre aquelas palavras. Dor, sofrimento e ódio, uma poderosa combinação de sentimentos, manejados por mãos habilidosas como as de Berforam, tem efeitos mais devastadores que os de qualquer espada.

    - Mas como eu lhes disse. A pessoa, que vem nos iludindo há tanto tempo, se encontra aqui! Berforegh é seu nome e durante séculos ele ajudou a traidora cegar nossos olhos, transformando-nos em seus brinquedos, para servi-la, sem questionarmos! Porém esses tempos terminam aqui! Mas talvez Berforegh seja uma simples vítima como nós, ou talvez também tenha se arrependido! Portanto, lhe daremos uma chance. - disse Berforam, dessa vez a ironia voltou a estar presente em suas palavras.

    - Você, Berforegh, filho de Thalladar, renegue o nome de Glórienn, demonstrando assim, todo seu arrependimento, se tornando digno de receber o perdão de todos os elfos aqui presentes! - disse Berforam, alto e claramente.

    Berforegh demorou-se a responder, encarou Berforam, em silêncio, durante alguns segundos. Depois virou-se para todos os elfos que o cercavam, sua face estava deformada graças aos duros golpes de Berforam. Enxergava somente com seu olho esquerdo e estava mais curvado do que de costume, ainda segurando o braço quebrado.
    Pigarreou, antes de cuspir mais sangue, então disse:

    - Você, Berforam, acusa Glórienn de ser omissa! De cegar os olhos dos filhos que ela tanto ama! De nos abandonar na hora em que tanto precisamos! Mas, saberia me dizer que hora precisamos dela? A grande maioria de vocês deve estar dizendo que foi durante a Infinita Guerra, quando fomos derrotados nos campos de batalha. Mas essa não é a verdade!

    - Glórienn sempre esteve presente, vocês que preferiram ignorar os feitos de Glórienn, pois é mais fácil se esquecer daquilo que é bom e somente lembrar do que é ruim! - disse Berforegh, e sua voz era mais suave que a de Berforam, mas não menospoderosa. Pois Berforegh era também um grande líder.
    - Não acreditam em minhas palavras? Pois eu tenho provas! Basta vocês se recordarem de váriosfatos, ocorridos no passado desde antes da fundação de Lenórienn, até dias mais próximos. Se vocês ainda não se lembram, eu os farei recordar! - disse Berforegh, dessa vez falando de modo rígido como se estivesse os advertindo de alguma falha. 

    - Todos vocês devem conhecer este fato, mas eu o contarei novamente:

    - Quando nossos ancestrais ainda se encontravam no mar, perdidos, famintos e entregue às pestes, tão comuns em longas viagens feitas em navios, Thallas, o capitão daquela frota, também duvidou de Glórienn e, em meio ao seu desespero, ergueu seu arco para os céus e desafiando a deusa élfica, disparou uma flecha com tamanha fúria que teria atravessado a mais resistente armadura. Mas para a surpresa de Thallas e dos outros elfos, aquela flecha se incendiou desviando-se para o horizonte e, como um meteoro, cortou os céus deixando seu rastro de fogo. - disse Berforegh, que era muito bom em contar velhas histórias.

    - E aquela flecha continuou, sempre para o Leste, até que sua luz quase sumiu na noite escura. Então ela explodiu! Mas não uma explosão qualquer, não houve barulho e sim muita luz, uma tranquila luz verde, que iluminou o horizonte para depois se juntar em um único ponto e assim nasceu Selledarienn, que vem do antigo élfico, e quer dizer Estrela Flecha. Thallas soube que era um sinal de Glórienn e, seguindo aquela estrela verde, os elfos encontraram Lamnor. É por issssss... – disse Berforegh, mas não conseguiu concluir, Berforam lhe acertou um chute nas costas, jogando-o ao chão. - Responda somente o que lhe foi perguntado velho! Renegue o nome de Glórienn! - disse Berforam, demonstrando uma frieza desmedida.

    Berforegh ficou algum tempo caído no chão, muitos pensariam que ele estivesse morto, não fosse pelo barulho de sua respiração quase engasgada pelo sangue. Alguns elfos tentaram ajudá-lo, mas foram violentamente contidos novamente. Belleg, que continuava imóvel devido ao encantamento, não conseguiu impedir que uma furtiva lágrima deslizasse por sua face. Então, com muita dificuldade, Berforegh se pôs de pé novamente e disse:

    - Como eu ia dizendo, antes de ser interrompido. Glórienn jamais nos abandonou, ou vocês já se esqueceram de certos fatos, como quando plantávamos tão pouco, pois quase todas as nossas atenções estavam voltadas para guerra, e nossas colheitas eram tão fartas que nem os mais antigos de nossos anciões, conseguiam se lembrar de colheitas tão boas. Quando nossas árvores carregavam-se com tantos frutos, que às vezes apodreciam nos galhos, pois não haviam mãos suficientes para que fossem colhidos. – disse Berforegh, que cuspiu novamente o sangue acumulado em sua boca, mas antes que prosseguisse, as palavras de Berforam o interromperam:

    - Você nos conta histórias de passados longínquos e fatos que não tem como provar, por que não nos diz uma história mais recente! Mais digna de que a tomemos como verdadeira! – disse Berforam, acreditando que acabaria com o belo discurso de Berforegh, pois sabia que se perdesse a cabeça novamente e atacasse o sacerdote, aqueles elfos do acampamento jamais iriam se aliar à sua causa.

    Berforegh pela primeira vez se virou para Berforam, havia um discreto sorriso, em seu rosto tão castigado. E aquilo preocupou Berforam, mas do que qualquer outra coisa naquela noite.

    - Eu farei o que deseja Berforam! Pois todos conhecem esse fato, principalmente você! – disse Berforegh, com tanta firmeza e convicção que parecia ter se esquecido de seus ferimentos.
    .
    - Isso aconteceu há dezoito anos, duas tropas haviam se enfrentado em uma planície ao sul de Lenórienn. Como vocês devem imaginar, era mais uma das muitas batalhas travadas entre nosso povo e os exércitos hobgoblins. Os elfos venceram aquela batalha, pois eram liderados por Berforam, a Lâmina de Glórienn, mas o sangue de muitos elfos tingiu aqueles campos de vermelho e não mais que doze elfos sobreviveram. Mas somente onze deles retornaram, após muito procurar pelo corpo de seu líder. Este, contudo, se encontrava debaixo do imenso corpo já sem vida de Gorrondar, o líder dos hobgoblins. Mortalmente ferido, Berforam não conseguiu se livrar daquela besta queeeeeeeee... - disse Berforegh, que novamente foi interrompido por outro golpe de Berforam, que disse:

    - Cale-se! Eu não quero mais escutar suas palavras, pois conheço suas intenções, quer nos cegar novamente! Agora quero que responda minha pergunta, renegue o nome de Glórienn ou aceite as conseqüências!

    Berforegh não tinha mais forças para se levantar. Permaneceu onde estava e, com muito esforço, conseguiu se virar, com o rosto para cima, assim suas palavras sairiam mais claras. Então, como que, desafiando Berforam, prosseguiu:

    - Aquele Espada de Glórienn desmaiou e, em meio aos seus delírios, viu Glórienn, que lhe pediu para que se reerguesse e prosseguisse liderando os exércitos élficos. E Berforam, a Lâmina de Glórienn, se livrou das garras da morte e se levantou somente com uma cicatriz, deixada pela espada de Gorrondar. Garanto que se Berforam não continuasse liderando nossos exércitos, levantando a moral de nossos soldados, Lenórienn teria tombado já há muito tempo. - disse Berforegh, que depois se silenciou.

    Berforam não disse nada durante alguns segundos. Tempos depois, ele ainda se perguntaria porque deixou Berforegh concluir aquela história, que de fato era verdadeira. Então suas palavras romperam o silêncio:

    - Você ainda não me respondeu Berforegh! Você renega o nome de Glórienn?

    Em resposta Berforegh começou uma oração à deusa dos elfos e, aquilo irritou Berforam, que o agarrou pelo manto pondo-o de pé e gritando raivosamente repetiu a pergunta:

    - Você Berforegh, filho de Thalladar, renega o nome de Glórienn?

    - Para sempre seremos fiéis a ti, ó Glórienn. - Berforegh concluiu sua oração e depois sorriu, mas não um sorriso qualquer; mesmo conhecendo seu destino, Berforegh sabia que apesar do discurso de Berforam suas palavras haviam posto fim às crescentes dúvidas dos corações daqueles elfos e que boa parte deles continuaria fiel a Glórienn, e aquilo alegrara seu coração, mas seu olhar demonstrava piedade e uma sutil tristeza.

    E assim terminou a longa vida de Berforegh, uma morte sutil, um rápido golpe de Berforam com seu mortal aji cortou a garganta de sumo-sacerdote, pondo fim a todo o sofrimento do velho elfo. Ouviram-se gritos e choros abafados, pois Berforegh era muito querido por boa parte daqueles elfos. Berforam observou o corpo do sacerdote por alguns momentos, olhava demonstrando desprezo, mas logo começou a sorrir, um sorriso sádico e infeliz.

    - Vocês todos viram o que aconteceu, ele morreu rezando para a deusa Glórienn e, semelhante a tantos outros elfos foi traído, mesmo sendo ele o seu sumo-sacerdote. Então respondam - me: vocês acham que algum deus ainda protege este povo? - disse Berforam, quase sussurrando novamente, mas elfo algum respondeu aquela pergunta. Uma estranha sensação tomava seus corações e, mesmo Berforam parecia surpreso com aquilo.

    Todos os elfos, quase que irracionalmente, voltaram suas atenções para o mesmo ponto, um lugar sombrio entre algumas árvores, e foi das sombras que Ela surgiu. Envolta em um manto tão negro que parecia ser feito de pura escuridão, mais leve que a própria seda, como se as próprias trevas tivessem sido usadas em sua confecção. Ela caminhou para mais próximo deles, parecia flutuar carregada pelas sombras e, enquanto se movia, as tochas e fogueiras se apagavam até que restou somente uma única tocha, mas, em se tratando de elfos, era o suficiente para que enxergassem claramente.

    Ela não disse uma palavra sequer, mas todos sabiam quem era Ela. Era Tenebra, a deusa das trevas, seus corações sussurravam. Ela parou diante dos elfos. Estes estavam atônitos com sua presença, sentiam medo e admiração ao mesmo tempo e, de alguma forma, aquilo parecia agradar Tenebra. Então delicadamente, Ela levantou seus braços, como se quisesse os amparar, da mesma forma que uma mãe faz com um filho. E naquele momento a noite pareceu mais escura do que nunca.

    A escuridão começou a tomar o coração daqueles que não resistiram, suas mentes os obrigavam a reviver suas mais tristes lembranças, o ódio e a dor se tornaram quase insuportáveis e, de alguma forma, Glórienn parecia ser a culpada de todo o mal que lhes foi causado. Então vieram as trevas e apaziguaram a dor, reconfortando-os, e agora quanto mais odiavam melhor se sentiam.

    Alguns fugiram, outros permaneceram, pois aceitaram o presente que Tenebra lhes ofereceu. A escuridão acalmou a dor de seus corações e, em troca, aqueles elfos juraram fidelidade eterna a Tenebra. Então ajoelharam-se e idolatraram sua nova deusa, dando-lhe um novo nome, Simbelmynë, que traduzido para o Valkar seria algo como .dama das sombras.. E quando se colocaram de pé novamente, perceberam algo que os fascinou, seus cabelos eram agora negros, assim como seus olhos, o mais franco reflexo de suas enegrecidas almas.

    Entre eles se encontrava Berforam, que após contemplar a face da deusa das trevas, foi o primeiro a sussurrar o nome Simbelmynë, pois se lembrou da pequena e bela flor branca que se mostrava apenas durante a noite. Então Berforam se proclamou líder daqueles a quem ele chamou de elfos negros, os filhos de Simbelmynë!

    A deusa das trevas sorriu, agora podia-se ver seu rosto que durante todo tempo havia estado oculto. Era uma elfa negra, sua pele era tão clara quanto o eterno gelo das Uivantes, pois nenhum raio de sol jamais a tocara, e seu rosto, que parecia conter o pálido brilho das estrelas, era mais belo do que o de qualquer outra elfa que andara sobre Arton ou Lamnor, seus cabelos mais negros que a própria noite e na escuridão de seus olhos podia-se enxergar o infinito. E esta imagem elfo algum esqueceu, mas nenhum deles jamais conseguiu descrever tamanha beleza e, mesmo seus melhores artistas, nunca conseguiram retratar a imagem de Simbelmynë.

    Esquecido em um canto, Belleg observava tudo em silêncio, o feitiço de Mílliel já se quebrara há muito e o Espada de Glórienn não se moveu, preferiu observar tudo calado. Viu os elfos fiéis a Glórienn fugirem, amedrontados pelo poder das trevas, mas ele ficou! A fé na deusa dos elfos o fez resistir à sedutora escuridão, mas o poder de Simbelmynë se tornava mais forte conforme aumentava o ódio no coração de Belleg. E mesmo que não quisesse, Belleg odiava Simbelmynë, por ter feito aquilo com os filhos de Glórienn, Belleg também odiava os elfos negros por terem se rendido ao poder da escuridão e, principalmente, odiava Berforam por ter matado aquele que todos chamavam de Berforegh, mas Belleg tinha outro nome para ele, Nillel, que traduzido para o Valkar seria pai.

    - Vejo que ainda se encontra por aqui Belleg. Então, apreciou a nova forma de nosso povo? – disse Berforam de forma cínica, com aquele sorriso infeliz no rosto, pois não havia se esquecido de Belleg em momento algum. Belleg permaneceu calado, fitava os olhos negros de Berforam, sentia o ódio e a escuridão crescendo dentro de si.

    - O que foi? Não gostou do que nossa deusa fez conosco? Ou talvez não tenha gostado de ver que algum deus ainda se importa com esse povo? - disse Berforam ainda cínico. Belleg olhou mais fixo ainda nos olhos de Berforam e por mais que tentasse resistir, o ódio o tomava. Então ele rompeu seu silêncio:

    - Por quê? - disse Belleg num tom baixo, mas claro e firme.

    - O que quer dizer com .por quê.? É melhor ser mais claro, servo da traidora deusa élfica. – disse Berforam, dessa vez sem cinismos, pois queria demonstrar que realmente considerava Glórienn uma traidora.

    - Porque você matou Berforegh? – disse Belleg, que não contendo mais sua fúria, retirou a espada Selledarienn e a apoiou no chão. O brilho verde da espada o iluminou e seu semblante não conseguia mais esconder seu ódio, demonstrando o inevitável.

    Berforam sorriu, não por cinismo, seu sorriso era verdadeiro e seu coração realmente se alegrara, pois sentia que estava muito perto de trazer desgraça a outro servo de Glórienn e nunca houve algo que um elfo negro apreciasse mais!

    - Quer saber porquê? Então faça por merecer! Levante sua espada, Belleg, filho de Berforegh e não se acovarde feito sua maldita deusa! - disse Berforam, o cinismo em sua voz maior do que nunca, o sádico sorriso voltara à sua maligna face e os olhos demonstravam toda a escuridão que agora tomava conta de sua alma.

    - Porque você matou nosso pai? – gritou Belleg. Não conseguindo mais conter sua fúria, atirou-se sobre Berforam, parecia ter perdido a razão, como se houvesse esquecido de tudo o que havia aprendido e, naquele momento, a escuridão quase tomou sua alma, mas havia algo dentro de si que recusava deixar-se dominar pelo poder de Simbelmynë.

    Berforam se desviou de Selledarienn com extrema facilidade, e ainda sorria cinicamente. Faziam anos que seu coração não se alegrava, tudo parecia perfeito até aquele momento e, se conseguisse abrir os olhos de Belleg, sua terrível felicidade se tornaria completa.

    - Vingança! Foi por vingança que matei o maldito lacaio de Glórienn! - disse Berforam, sem demonstrar nenhum arrependimento; queria instigar Belleg a odiá-lo ainda mais, pois somente assim conseguiria destruir o pouco de fé em Glórienn que restava no coração daquele elfo.

    - Ele nunca fez nada contra você assassino desgraçado, você o matou e agora desonra seu nome. Vai pagar por isso maldito Berforam, pela alma de Berforegh eu destruirei você! - disse Belleg, demonstrando que as palavras de Berforam deram o resultado esperado e o Espada de Glórienn apertou ainda mais o punho de Selledarienn, novamente investindo contra Berforam. O elfo negro por sua vez, utilizando-se de um de seus aji, facilmente defendeu o golpe de Belleg, pois o jovem Espada de Glórienn não era adversário digno.

    - O sangue de meus filhos, seus sobrinhos, Belleg, netos dele, sujam as mãos desse maldito, pois
    se eu não tivesse lhe escutado, minha família ainda viveria, mas essa velha serpente, a mando da traidora Glórienn, sussurrou malignos conselhos em meus ouvidos e eu, em minha tolice, segui suas palavras! - disse Berforam, defendendo-se e se desviando de vários golpes de Belleg, sua voz carregada de ressentimento e amargura.

    - Cale-se maldito Alma Negra! - gritou Belleg, atacando cegamente Berforam. O ódio queimando no peito atingiu o ápice de sua força e por pouco a escuridão não tomou completamente sua alma.

    Berforam então percebeu que era chegada a hora que tanto esperara, defendeu mais alguns golpes de Belleg e depois deixou-se desarmar, então disse:

    - Vejo que aprendeu bem jovem Espada de Glórienn! Receba meus cumprimentos. Mas será que tem coragem suficiente para encerrar esta luta? – disse Berforam. A espessura de uma folha separava a espada Selledarienn de sua garganta. Belleg olhava fixamente para seus olhos, odiava Berforam mais do que tudo e, não entendia porque não conseguia matá-lo.

    A verdade é que, no coração de Belleg, uma terrível batalha acontecia, a escuridão, movida pelo ódio, investia sobre o resquício de fé na deusa dos elfos, que teimava em resistir à superioridade do poder das trevas, mas essa batalha também estava prestes a terminar.

    - Sabe o que senti quando matei Berforegh? Mesmo que quisesse não conseguiria descrever! Nunca fiz nada que trouxesse tanto prazer. Ver o sangue dele escorrendo pela lâmina de meu aji, essa foi a recompensa dele pelos anos de servidão a Glórienn! - disse Berforam, aos sussurros, com um tom sádico novamente.

    Belleg, mais furioso do que nunca, encostou Selledarienn no pescoço de Berforam, a afiada espada perfurou a pele que recobria a garganta do elfo negro. Uma gota de sangue escorreu pela lâmina da sagrada espada, forjada em tempos imemoriais, e que, em toda sua existência, jamais havia provado o sangue de um elfo.

    - Vamos Belleg! Não se acovarde! Faça o que seu coração lhe manda! Mate-me maldito desgraçado ou, juro em nome de Simbelmynë, que até o fim de meus dias, assassinarei todos aqueles que forem fiéis a Glórienn! - gritou Berforam, que depois sorriu, pois viu que algo acontecia com Belleg.

    Belleg segurou o punho de Selledarienn com mais firmeza, preparava-se para dar fim à mais desgraçada das criaturas, quando algo desviou sua atenção. A luz da lamina de Selledarienn se apagara, pois naquele momento Glórienn amaldiçoou a espada profanada pelo sangue de Berforam. Mas algo pior chamou a atenção do Espada de Glórienn, pois a lâmina de Selledarienn era como a mais pura prata e, naquele momento Belleg viu seu reflexo refletido na espada. Seus cabelos estavam negros!

    Belleg entrou em pânico, olhou seu reflexo por poucos instantes que para ele pareceram séculos. .A escuridão venceu., pensou ele antes de soltar Selledarienn. Mas a espada não tocou o chão, pois quando a mão de Belleg a soltou, a sagrada espada de Glórienn explodiu. Uma gigantesca luz verde ofuscou todos os presentes, com exceção de Simbelmynë. Não houve estilhaços ou barulho, mas demorou alguns minutos para que todos voltassem a ver. E o que viram os surpreendeu.
    Belleg abraçava Berforam.

    - Eu o perdôo meu irmão e tenho certeza de que Glórienn e nosso pai também o perdoarão! E quer você queira ou não, você é, e sempre será Berforam filho de Berforegh. Tenho certeza de que sua esposa e seus filhos, juntos de nosso pai, o aguardam em Nivenciuén, o Reino de Glórienn. Até algum dia meu irmão! - disse Belleg, com sinceridade, pois amava Berforam novamente. A luz de Selledarienn afastou a escuridão que por pouco tempo dominara seu coração. Sua fé em Glórienn nunca fora tão grande.

    Belleg tomou o corpo de Berforegh, colocou-o cuidadosamente sobre o dorso de um cavalo e, antes de sumir na noite, fitou o rosto de Simbelmynë, pois seu coração ainda a odiava, e então desapareceu nas sombras.

    Alguns elfos negros tentaram impedi-lo, mas foram advertidos por Berforam que durante um longo tempo observou a estrela Selledarienn, e seu brilho esverdeado na noite sem lua. Depois sorriu, pois algo na estrela o agradou.
    ·····

    Olhando para o leste, ele observa o céu noturno do alto da velha árvore, já parou de cantar há muito tempo. Selledarienn, a Estrela Flecha, ainda se encontra presa ao véu da noite, mas seu brilho jamais foi o mesmo desde aquele triste ocorrido.

    Ele é Belleg, líder da ordem dos Espadas de Glórienn. Alguns o chamam de Belleg, a Espada Trincada, isso por que seus cabelos, antes prateados, hoje são negros, e também costumam dizer que a qualquer momento ele cairá em desgraça. Mas com essas pessoas Belleg não se importa, sabe que tem a confiança de Glórienn. Pois dentre todos os Espadas de Glórienn ele é o único que não perdeu seus poderes.

    E a Ordem dos Espadas de Glórienn confia em Belleg, pois dizem que em seus olhos verdes ainda é possível ver o brilho de Selledarienn. E estes, cuja fé em Glórienn ainda se faz presente, o chamam de Belleg, a Última Flecha.

    Outros contos de Elfos Negros Artonianos
    Armargura e Ressentimento Parte 1 Parte 2 Parte 3
    Criador  dos Elfos Negros de Arton: Shaftiel 



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