sábado, 28 de setembro de 2019

O rei Das Docas

Autor: Márcio R. D'us
Capitulo I
Olhos de Águia - Daqui pra frente não pode haver erros. Se não formos cuidadosos, podemos ser pegos, ou até mesmo mortos. – os outros balançaram a cabeça. Se você os visse mais de perto, aliás, contemplaria em seus rostos aquela jaez de confiança de quem sabe o que está fazendo. 

Saíram um a um do alçapão, anexado à parte lateral de um galpão decadente. Numa espécie de U, o buraco apertado tinha duas aberturas, uma dava em um beco e a outra dentro do esconderijo. Irromperam no beco desconfiados. Embrenhados no pauperismo de vestes surradas, encardidas e puídas. Avançaram pelas ruas costurando becos e vielas vazias. Observados pelos casebres úmidos e espectrais, do fim de uma idade média na qual os subúrbios não diferenciava ratos de homens. A manhã estava fresca como uma virgem, e do mar subia uma brisa revigorante. Chegaram juntos a uma rua próxima à feira central, ladeada por sobrados deteriorados. Naquele ponto o movimento de transeuntes era crescente e havia diversas ruelas em direção ao mar, antes, porém, um labirinto de lonas dispostas numa paleta de bege, confundia as vistas dos mais circunspectos.

 – Aqui nos dividimos. – Ordenou uma última vez sua trupe, sua família esfacelada. Como roedores, eles se dispersaram pelos becos próximos à feira e logo se misturaram com a multidão. O líder, acompanhado de outros dois, atravessou-a a passos rápidos. O cheiro de peixe pairava mais forte que o normal. A gritaria habitual dos vendedores era confusa e ensurdecedora. A feira era um centro comercial onde poderia se encontrar de tudo: Especiarias trazidas de outras terras, porcos, cabritos, galinhas, peixes e frutos do mar. Abastecia tanto o povo da cidade quanto os navios que partiriam ao oceano. Marujos carregavam sacas e caixotes por todos os lados exalando peixe morto, sabe Deus se o odor provinha deles ou do que carregavam. 

O cais era uma geringonça desajustada, com engrenagens que funcionavam fora do tempo e lutavam para se fazer funcionar em meio ao caos. Com diversos navios e pequenos barcos ancorados nas docas, ondeando diante da instabilidade do mar e, com mais homens e suas infinitas caixas. Como dedos fincados em areias movediças, os píeres se estendiam por mais de cem metros mar adentro. O mais antigo, de pedra, fora construído de blocos rochosos aproveitando uma barreira de corais como alicerce. Sobre ele, um pequeno castelo despontava como alfândega e torre de vigília. 

As docas se estendiam lateralmente ao longo desses píeres. Galés de todos os tamanhos atracavam em paralelo às plataformas, de acordo, é claro, com o humor da maré. Além do píer de pedra, havia mais três, tão extensos quanto, só que feitos com toras e ripas de madeira. Perto de um deles, parados ao lado de uma fenda no chão, o líder acompanhado dos outros dois dissimulavam, vez ou outra, olhando para cima, onde um bando de gaivotas parecia reclamar da vida. Do alto de um casebre, o reflexo dum espelho indicou que todos chegaram às suas posições. Foram impelidos instantaneamente. 

Desceram espremidos pelo buraco no cais, longe de olhares curiosos. Assim que constataram que não haviam sido seguidos, como primatas, saltaram em direção ao mar por entre as bases de sustentação da plataforma. Seguiram em direção às docas por baixo, onde os navios estavam ancorados. Pés, mãos e joelhos arranhados, não os impediram de chegar ao alvo, um galeão de proa afinada. Estes monstros guerreavam pelos mares, e atravessavam continentes com mercadorias de valor incalculável. E esse era dos grandes. Com seus quatro mastros flutuava imponente exibindo a inscrição desgastada no casco enegrecido: La Concepción. Na linha junto d’agua, a galé era tomada por humo ao redor do casco. Segurando o esporão da proa com seus braços esticados sobre a cabeça, La Bella Dulcinea nunca se fatigava. A esposa da tripulação. Com grandes pedras cor de jade no lugar dos olhos. Esculpida em carvalho e pintada de dourado, como uma amante estendia seu corpo por sob toda a proa. 

Cuidadosos, os homens de bordo retocavam suas cores a cada porto que ancoravam. Um garoto franzino arrastava uma caixa despretensiosamente entre os navios. Com a mão que estava livre, Pierre ajeitava o lenço vermelho na cabeça que insistia em escorregar. Muito miúdo dentro de roupas largas e surradas, estava acompanhado por dois sujeitinhos um pouco maiores, Paulo e Estevão, que o seguiam como guarda costas, sempre a observar o entorno com ares de preocupação. Parados ao lado do imenso galeão, direcionaram sua atenção para o casebre no porto, de onde havia vindo o primeiro sinal. 

– Ei moleques! – disse um dos marujos que trabalhava por ali e andava na direção deles com um saco na cabeça. Pierre sentiu um calafrio subir-lhe pela espinha. – Saiam da frente, estão no caminho! 
– Temos que entregar está caixa para o Mou – disse Pierre, sem pensar. 
– Não conheço nenhum Mou! Saia da frente eu já disse! – O marinheiro barbudo e fedorento deu lhe um empurrão que graças aos perdigotos ácidos de suor quase o fez desmaiar. Amparado pelos colegas que riam, Pierre foi sendo arrastado junto com a caixa que segurava quase desfalecido pelo nojo. Foram para longe do monstro do mar. Ancorada como uma irmã menor sob a sombra do galeão, encontrava-se outra galé. Aparentemente de pesca, num tom desgastado que sugeriria um carvalho que em algum período do espaço/tempo fora pintado de azul, com homens atarefados sobre o convés cuidando de limpar e organizar as coisas. Um reflexo de luz se acendeu de cima de uma das casas no porto.

 – O sinal – alertou Paulo de sobressalto, acertando a nuca do irmão com um tabefe. Os traquinas apressadamente deixaram a caixa próxima ao barco de pesca que estava em paralelo com o Galeão. Saíram do local rapidamente e foram para um ponto de observação. O porto se estendia por uma boa faixa de costa. Nele havia imóveis dispostos usados geralmente como depósito de materiais. Tanto de especiarias trazidas pelos navios, quanto de materiais de pesca. No alto de um desses pequenos prédios estava Anoop. 

Anoop, como muitos indianos traídos pelos colonizadores, fora trazido para servir como escravo. Lutara incansavelmente até fugir de seus senhores. Fora achado pelo grupo desamparado, quase morto nos guetos. Era dono de uma timidez de avestruz, mas aos poucos a convivência com o bando lhe fez aprender a língua e outras coisas. Deitou-se no piso da laje numa parte onde não havia telhas que arranhavam e esperou. Enxugava em vão a testa com o punho da blusa. De onde se encontrava, o cais se estendia num arco talhado em madeira e pedra. A melodia no plano de fundo difundia- se em notas de comandos, galhofas e grunhidos inespecíficos, com batidas ritmadas do percussionista que controlava o instrumento do mar. 

Após sinalizar para o grupo utilizando um estilhaço de espelho, se ajeitou para apoiar o mosquete na quina elevada da laje. Esperou o momento ideal... E quando ele chegou, contando os batimentos do coração, Anoop fixou-se no alvo. Ele apertou o gatilho com a mesma confiança com que apertaria nos próximos anos de sua vida. Mirou na caixa de pólvora deixada por Pierre entre os navios, e o estrondo fez com que pássaros pousados nas lajes vizinhas saíssem em uma revoada destrambelhada. A repentina liberação de energia teve um transtorno inigualável nas docas. O navio de pesca teve suas velas estraçalhadas e parte de seus tripulantes feridos se jogaram ao mar. Outros, atônitos, tentavam salvar o que podiam. No grande galeão, todos saíram com suas armas, espadas e punhais prontos para a batalha. Marujos temperados e cozidos em guerras por toda uma vida, demoraram a perceber o que de fato ocorria. 

Anoop escondeu a arma numa bolsa de couro, desceu as escadas na pachorra de um jabuti e logo se misturou à multidão. A explosão reverberou abaixo do cais atormentando as águas e os miolos. Um dos garotos sequer notaria, não fosse a vibração das madeiras na qual estava segurando. Mouco de nascença chamavam-no de Sordo, o Arlequim. A vida por definição é simplesmente percebida. A dita percepção, tida através dos sentidos, atinge diferentes níveis de graus, conforme fatores ligados: ao indivíduo, ambientes marcantes, sabores envolventes, sons inebriantes.... 

Em consequência, pessoas que são forçosamente extraídas da percepção padrão costumam ver o mundo e suas nuances, de outra forma. Sordo nunca havia visto as pessoas rirem tanto e demonstrarem tanta alegria quanto naquela noite, oito verões atrás. As palhaçadas e acrobacias fascinavam-no e grudaram em seu cérebro como piche, fazendo o crer, que aquilo era algum tipo de certo. Daí toda fixação por arlequins. Contudo, as lembranças como num redemoinho de cenas, pareciam confusas. Jamais havia estado tão feliz e tão triste em um período tão curto de tempo. Sua mãe o deixou sentado num banco observando absorto o picadeiro. Espere aqui, querido, volto logo, ela disse, movendo os lábios caprichosamente para que ele pudesse compreender. Foi a última vez que ele a viu. Viveu com as pessoas do circo desde então. E por conta das perseguições da época feita pelos religiosos, numa passagem rápida por Cádiz, mais uma vez, fora deixado pelo caminho. Quando os miolos voltaram para o lugar deram seguimento ao plano.

Aproximaram-se ainda mais do paredão de madeira curvado e instável e avaliaram as bocas de fogo. Os canhões, que abririam um buraco do tamanho de porco, ocupavam janelinhas malignas, bem acabadas e esculpidas nas bordas. Procuraram ali uma brecha onde pudessem entrar. Se fossem maiores, com certeza o esquema seria outro, como meninos, podiam entrar até por fendas debaixo de portas. 

Quando encontraram o local ideal, ergueram-se, espremendo-se pelo buraco, até caírem do outro lado entre os canhões. O porão estava repleto de esferas negras alinhadas na sua maioria em pilhas com tamanhos variados. Levantaram um nevoeiro de fuligem ao cair e o cheiro de pólvora fez coçar o nariz e arder os olhos. Os invasores se aproveitaram de sua agilidade e se esgueiraram pelos cantos, assim como faziam os roedores furtivos. Podiam ouvir a agitação no convés, o que lhes causou certo temor, suores e palpitações. Cruzaram toda a enorme casa de armas e atravessaram por um portal onde havia algumas redes, cordas penduradas e materiais para manutenção do navio. Tudo era muito sujo, úmido e cheirava a mofo. As câmaras pareciam que não tinham fim. Carniças de animais dependuradas, cabras e porcos dentro de currais improvisados... Estoque que causaria inveja a qualquer intestino de baleia com um pouquinho de consciência. O estômago de Baú deu voltas ao sentir a fragrância de algum animal morto havia tempos. Por vezes, segurou a ânsia. O garoto na verdade chamava-se Rico, tinha esse apelido não só pelo fato de ser gordo, mas principalmente por guardar seus tesouros dentro das calças para comê-los escondido dos outros. Era um dos homens de confiança e, apesar de sua pouca agilidade comparada aos demais, possuía a força de um adulto. Os três avistaram uma escada e por ela subiram velozes. Baú e Sordo iam atrás, o outro andava à frente como se soubesse o local exato para o arremate. Atravessaram mais algumas câmaras quando uma voz rouca fez a espinha dos invasores gelar. 

– Quem são vocês? O dono da voz era um velho magricela e salivante. De cara perceberam que estava bêbado. Não havia nenhum dente na boca do ser ébrio mumificado. E um dos olhos estava tapado com uma faixa de tecido que, pelo aspecto, devia estar ali a milhares de anos. 
– Os malditos piratas de Ben Hedt! Então vocês voltaram? Pelo cheiro de bosta pude perceber...[soluço]. Sabia que regressariam atrás da minha alma. – Cada palavra vinha acompanhada de uma enxurrada de cuspo. – Estou preparado para batalha, venham, venham se houver um pouco de coragem nestas carcaças! – O velho tirou com dificuldade de dentro das calças apenas a empunhadura de uma espada. 

Os garotos se olharam confusos com aquela cena bizarra, não entenderam o que o velho queria dizer com as ameaças. Nem o que poderia fazer com a espada invisível.
Demonstraram certa impaciência, e o velhote fora derrubado com um pedaço de madeira que estava caído no chão. Um arremesso certeiro no meio da testa e com força suficiente para abatê-lo. O homem, que já não tinha lá muita vitalidade nem equilíbrio, estatelou-se por cima de um monte de quinquilharias.
Passado o susto, avançaram pelas entranhas do navio. Indo no sentido da popa alcançaram uma porta vermelha. Na fronte encaixada uma pequena caveira dourada e ameaçadora, mordendo uma alça da mesma cor.
– É aqui. Sejam rápidos.
*
No cais a confusão era absurda. O incêndio no barco de pesca se alastrara, atingindo as velas do galeão. Os marujos traziam água do mar em velhos baldes de madeira. Trabalhavam coletivamente, porém o desespero tomara conta de todos. Do porto, trouxeram uma espécie de bomba d’água. Dois homens bombeavam enquanto outro posicionava o jato em direção ao barco.
 
– NAS VELAS! APAGUEM O FOGO DAS VELAS! – Gritavam alguns dos marujos do galeão.
A fumaça negra cortinava o céu, avançando sobre o azul celeste numa carreata
sombria pelo firmamento. Os circulantes do porto assistiam espantados a correria
desenfreada dos que temiam ver suas galés virarem carvão.
Três sujeitinhos alheios ao incêndio, empurravam e empilhavam caixotes em
torno uma abertura para os coletores subterrâneos abaixo do cais.
– Minha mão seu filho de uma porca manca e prenha, você quase a arrancou! –
Exclamou Galgo, o mais alto entre todos, apesar de ter os mesmos catorze anos da
maioria, estapeando a cabeça do parceiro mandando a boina dele para longe por ter
soltado o caixote antes da hora.... Sendo muito comprido, Galgo, não tinha muita
postura e andava meio curvado. Os cabelos escuros, curtos e lisos eram daquele tipo que pareciam lambidos na cabeça. – Quem mandou ser uma mula desengonçada de merda – retrucou Silas (Fumaça) ao passo que buscava seu chapéu e o vestia, abaixando o amontoado de seu cabelo esvoaçado que lhe presenteou a alcunha. Herdado do pai, pelo menos era o que a velha escrava com quem cresceu dizia: “sua mãe era uma nobre vadia que adorava um bom é belo preto”. - EI! – Exclamaram os dois. Num golpe rápido de braços abertos, Aureliano o mais forte de todos do bando, atingiu-os com a palma das mãos. O gigante de poucas palavras. Grandão para os demais. Possuía cabelos castanhos, pele bronzeada e exibia no corpo diversas cicatrizes. - Já acabamos idiotas – disse Aureliano como se nada tivesse acontecido. Se virou na direção das docas e da mancha negra que se esvaia do céu: – espero que todos tenham se saído bem. Pierre, Paulo e Estevão e o indiano Anoop, chegaram tranqüilos e praticamente juntos no local do porto entre dois armazéns onde ficava o bueiro vigiado por Aureliano e os outros. – Então, como estamos? – perguntou Pierre a Silas. 
– Eles estão atrasados. O fogo começava a ser controlado, apesar de ter destruído boa parte da embarcação de pesca. O trabalho em equipe e a experiência dos marujos e pescadores fizeram a diferença. No galeão, apenas algumas velas foram queimadas e o costado estava quente, mas aparentemente intacto.
 – Stork! – disse o capitão do La Concepción. – Verifique o navio, traga também os documentos do alcaide que estão no meu compartimento e dê uma olhada no interior para checar se há avarias. 
O marujo atendendo o comando desceu ligeiro pela escada do convés. O cheiro de queimado penetrara na embarcação, junto com um pouco de fumaça que era abanada por Stork sem muito sucesso. Entrou na saleta e em instantes voltou correndo desembestado e ofegante:
 – CAPITÃO! CAPITÃO! – bradou Stork, que voltava branco como um anêmico. – O navio, capitão, o navio...!
– O que tem o navio? – o homem paralisou. – Diga infeliz!
– O navio... fo, foi... roubado! Foi roubado, capitão! 



Nenhum comentário:

Postar um comentário