domingo, 10 de março de 2019

Astolfo contra o dragão

Por Tanna-Toh, eu juro que o relato que segue é a mais autêntica verdade, apesar das passagens aparentemente fantasiosas. Por mais inverossímil que vos possa parecer, trata-se de uma obra de veracidade da memória que aqui transcrevo sob a bênção de Anilatir, minha musa.
Benévolo de Ralandar

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- De que se trata a missão mesmo, meu jovem? – perguntou meu acompanhante, Astolfo, o Bravo, famoso herói. Na verdade, era eu, como bardo, quem o acompanhava para que pudesse cantar sua esplêndida vitória mais tarde.

- O de sempre, meu senhor: um dragão recentemente anda rondando as proximidades da vila. O líder local teme que vidas humanas, ou pior, vidas bovinas sejam usurpadas pela fera. Os aldeões reuniram todas as suas reservas monetárias a fim de recompensar um valoroso herói que ponha um fim à ameaça tirânica de tal criatura vil. – Eu nunca entendi o fato dos dragões, criaturas centenárias, apreciarem tanto mudar a localização de seus esconderijos de tempos em tempos. E sempre nas proximidades de algum vilarejo.

- E você veio ver como age um herói?

- Não, vim acompanhar o senhor.

- Pois então, meu jovem! – Ele tinha nitidamente uns cinco anos a menos do que eu, mas mesmo assim insistia em me chamar de “meu jovem”. – Quando soube que Astolfo, o Bravo daria cabo da besta, veio correndo presenciar e se inspirar com meu feito, não foi isso?

- Na verdade, senhor, - de súbito eu odiei aquele homem e sua total ausência de humildade e modéstia, mas ainda mantinha minha refinada educação – fui eu quem primeiro chegou a esse este lugarejo. Mas até então desconhecia a abominável ameaça. Quando fui dela informado e da vossa conseqüente vinda, enxerguei excelente oportunidade para uma composição.

- Que seja, que seja...

Não íamos a cavalo para não atrair desnecessária atenção do monstro. Caminhávamos lentamente por uma trilha perfeita no mato e por entre o descampado. Astolfo, o Bravo era realmente uma figura impressionante: corpo musculoso; pele queimada pelo sol inclemente das estradas; vasta e revolta cabeleira loura; roupas protegidas com camadas de couro e metal em algumas partes, mas curtas o suficiente para exporem sua trabalhada musculatura e que o faziam tremer no frio invernal. Portava um belo e poderoso escudo circular e carregava na mão direita uma lança, que segundo ele, era mágica. Seu sorriso era perfeito e brilhante, que ele gostava de ostentar com freqüência. A expressão de confiança na face até mesmo conseguia camuflar os dois dentes frontais postiços. Astolfo era o orgulho de qualquer personal-hero-stylist.

- Quem são eles? – perguntei por fim, após longo silêncio.

Apontava para uma chusma de lavradores remendados, sujos e maltrapilhos que nos seguia. Homens, mulheres, jovens, velhos, velhas e crianças; todos nos olhavam atentamente, como se a qualquer momento um de nós tirasse um pombo da manga, feito aqueles ilusionistas baratos. Notei que alguns traziam cestos ou sacos com refeições, para que pudessem se saciar durante o espetáculo vindouro. Estranha prática que tem virado moda em Arton.

- Ah, eles? São meus fãs. – respondeu-me distraído.

- Fãs!

- Sim, meu jovem. São os benefícios da transposição das regras de 3D&T para outro sistema.

- A altivez de vossos fãs reverbera a vossa fama.

Ele apenas me deu um de seus estratégicos sorrisos. Obviamente não percebeu minha ironia.

Astolfo percorria o caminho muito sério, salvo quando falava comigo. Parecia preocupado, talvez concentrado bolando um estratagema para abater o dragão.

- De que maneira pretendeis subjugar a dracônica criatura, ó valoroso paladino? – perguntei.

- O quê?

- Como matareis o dragão?

- De modo muito simples – respondeu-me sorridente, - mas também de forma astuciosa – ele esboçou a melhor expressão de sagacidade que conseguiu.

- Contai a mim vosso intento.

- Primeiro entro na caverna, porque todo dragão que se preze mora numa caverna. É provável que ele estará dormindo...

- Como sabeis? – interrompi-o.

- Dragões gostam de dormir, principalmente quando um herói está para invadir seu covil. E pare de fazer perguntas tolas! Depois analisarei a criatura em busca de um ponto fraco – ele gesticulava intensamente, encenando a situação hipotética. – Então bradarei um desafio heróico que irá aturdi-lo de medo, e não de sono como pensam alguns... aproveitarei o momento para enfiar minha comprida lança.

- Ooooohhhhhh! – exclamou o bando que nos seguia, fazendo uma interpretação maldosa de duplo sentido da frase.

- Deveras, vosso plano é extremamente engenhoso...

- Aham, é tiro e queda. Um dia você chega lá, meu jovem.

Já havia me irritado o suficiente com Astolfo. Fui conversar com o povaréu que nos seguia, sobre o dragão, sobre o estilo de vida simples do campo e outras inutilidades. Logo me vi cercado por diversos rapazotes robustos de caras alegres. Conheço o tipinho, bastante comum em Arton: jovens pobres e sonhadores, ávidos em conseguir fama, fortuna e mulheres seguem a glamourosa carreira de herói aventureiro. Pegam uma mochila e roubam a faca da cozinha de suas mães, fazendo-as de espada e saem pelo mundo. A maioria não dura duas semanas. Alguns ainda conseguem voltar pra casa.

- Você conhece Astolfo, o Bravo? – perguntou-me um deles.

- Não, e vós?

- Só de ouvido. Dizem que quando Astolfo espirra, Khlamyr lhe diz “saúde”!

- Dizem que antes de tomar Khalifor, Thwor Ironfist perguntou antes a Astolfo se ele deixava. – recitou um outro.

- Dizem que os minotauros não tinham chifres antes de Astolfo atingir a puberdade. – falou mais um, todo risonho.

- Basta, basta! Já entendi! Se Astolfo peidar, vós cheirais.

Já havia me irritado o suficiente com aquela gentalha. Decidi percorrer o restante do caminho longe de qualquer companhia humana.

Aproximamo-nos do fim da trilha, finalmente:

- É o fim da picada. – anunciei.

- Oooohhhh! – fez a platéia em coro, novamente subvertendo o sentido.

- E exatamente como vós falastes, há realmente uma grande gruta a frente. E vejais aqui: imensas pegadas! Certamente pertencentes ao dragão.

- Tem um dragão mesmo? – Astolfo estava pálido, parecia extremamente surpreso.

- E o que é que esperáveis?

- Ah, sei lá. Aqui no meio do mato é tão sem graça. Sabe como são esses roceiros. Tendo uma garrafa como companheira noturna de tédio, eles enxergam de tudo: lobisomens, dragões, discos voadores... mas um dragão de verdade! ‘Tô fudido!

- Oooohhhh! – desaprovou a platéia. Um delicado rapazinho deu uma insinuada piscadela a Astolfo.

- E você! Não poderia ter arrumado testemunhas menos maliciosas? Ô gente depravada! – reclamou o herói.

- Ué! Não são vossos fãs?

- Ahn... er... bom... devem ser. Fãs seus é que não são.

Ponderei por não retrucar a essa grosseria, pelo bem da minha integridade física. Porém incuti-lhe:

- Agora que sabemos que se trata de um dragão verdadeiro, é um alívio podermos contar com um herói verdadeiro. – Astolfo me deu como resposta um de seus sorrisões confiantes. Ele não era mesmo bom em perceber ironias.

Se dirigiu à entrada. Titubeou.

- Não estais com medo, estais? – provoquei.

- Medo? Medo! – ele se virou na minha direção furioso. – Então não conhece a fama de Astolfo o Bravo? Astolfo, o que chuta pedras descalço. Astolfo, o que discute a relação. Astolfo, o que come pastéis de rodoviária.

- Sim, vossa coragem é lendária. Desculpe-me, foi apenas uma brincadeira.

- E é por isso que ainda está vivo. Isso e o fato de que matar bardos dá azar. – Pôs-se a imitar uma galinha, gesto típico para afastar a má sorte. Pensei, rindo comigo, que se existisse um animal ao qual Astolfo pudesse ser associado, esse animal seria o que ele estava imitando naquele momento.

O herói começou a analisar a situação. Examinou as pegadas, mediu vagamente o diâmetro da entrada da caverna, observou as condições do relevo em torno e verificou a direção do vento. Ele realmente merecia um Prêmio Valkariano de Teatro.

- E então?

- É mesmo um dragão. E dos grandes! Recomendo que fique do lado de fora, meu jovem. Pode ser perigoso.

- Se eu aqui permanecer, de que maneira poderei anunciar os detalhes de vosso fabuloso triunfo?

- Vocês poetas sempre mentem mesmo. – resmungou ele, mais para si do que para mim.

- Mas nunca sobre Astolf,o o Bravo. – respondi malicioso.

Ele pareceu ficar sem argumentos e se resignar definitivamente a enfrentar o dragão. Estampou seu último sorriso e adentrou no covil da fera, seguido a certa distância por mim e pelos espectadores, que agora mastigavam nervosamente algum tipo de alimento ruidoso.

- Quereis que eu declame algo?

Encarei o silêncio como uma afirmativa e iniciei uns versos improvisados no meu alaúde:

- Nas brumas da morte ele entrou, o mais bravo dos bravos,
Tendo apenas a coragem como lume.
No silêncio tonitruante, onde o medo dilacera as vísceras
Antes mesmo de qualquer ataque.
Que terrores indizíveis aguardam ao virar da próxima curva?
A criatura fatal, pronta a arrancar o último suspiro
Com um único golpe de dor lancinante...

- Quer calar a boca, pô! Não ta ajudando. – gemeu a voz do herói em reclamação, vinda do breu.

- Oh, perdão.

- Vai logo cagão! - veio um grito da platéia.

- Quem disse isso? – exigiu Astolfo. – Repete se for macho! – berrou em desafio. Silêncio.

Avançávamos da seguinte forma: Astolfo a frente, em posição de ataque e alerta; mais atrás eu com meu instrumento musical; e por fim a multidão que iluminava a cena parcamente com algumas tochas.

Naquele silêncio tumular em que Astolfo encarava cada um dos integrantes e que nos olhávamos mutuamente à procura do culpado, foi que ouvimos um rugido: o dragão. Gritaria e confusão gerais. As pessoas se esbarravam umas nas outras. Algumas tochas caíram no chão e se apagaram. Ouvimos sons de batalha: Astolfo estava em combate!

Quando nos recompomos, vimos o guerreiro apoiado em sua lança, tremendo.

- Onde está o dragão? – perguntei apavorado.

- Fugiu! – respondeu triunfante.

- O que é isso em vossas calças? – indiquei uma mancha comprida no vestuário dele, que começava a lançar pingos no chão.

- Fui ferido. – respondeu-me sem jeito.

- Na genitália!

O “oooohhhh” da platéia dessa vez foi em piedade pela dor alheia. Os homens rapidamente trataram de proteger suas partes com as mãos.

- Que cheiro de urina é esse? – indaguei intrigado, farejando o ar. Gesto que foi seguido por todos. Astolfo acelerou o passou e rapidamente avançou em direção ao âmago da caverna.

Prosseguimos a passos tão curtos que nossos calcanhares tocavam a ponta dos dedos do outro pé. Foi então que uma forte e extremamente úmida lufada de vento nos atingiu. As chamas das tochas se extingüiram e nossos olhos viam apenas trevas. Ouvimos passos poderosos e uma respiração alta e ofegante. Então escutamos metal ser largado no chão e o som de corrida rumo à saída: Astolfo, o Bravo fugira.

Fiquei em estado catatônico, paralisado esperando pela baforada que me traria dor e morte. Mas ele não veio. O que veio foi uma risada. Uma risada que lembro até hoje. E que ainda hoje me deixa furioso:

- Ha-haiiiiiii-hi-hi!

Fortes luzes se acenderam por toda a parte. Nos breves momentos de fotofobia eu não distinguia nada.

- Sorrrria! Você está na “Pegadinha do Dragão”! – a platéia assobiava e aplaudia efusiva.

A minha frente, quando recuperei a visão, vi um homem sorridente (mais um!) vestido de smoking e cartola roxos.

- Dê um tchau para a mamãe, você está na IMVITE! – ele me pegou pelo ombro e me moveu com uma violência gentil. Apontava para um homem barbudo, vestido com pijama de estrelinhas e chapéu pontudo, que segurava uma grande esfera de energia negra entre as mãos.

- IMVITE? – repeti bestificado.

- Exatommmm! IMagem VIsual TEletransportada, estamos-trabalhando-num-nome-melhor... Com ela, você pode ser visto em qualquer lugar do continente através de um artefato mágico receptor!

- Qualquer lugar? – o espanto havia me deixado embasbacado e parecia haver drenado minha capacidade de formular frases.

- Simmmm! Caros espectadores, enquanto nosso pato... digo, convidado se recupera, vamos ao intervalommm.

O homem do pijama apontou a esfera na direção de um dragão roxo e borrachento (fantasia que algum idiota vestia) num canto. Dançavam ao redor do falso dragão, as duas mulheres mais voluptuosas que eu já vi em toda a minha vida. E elas estavam tão vestidas quanto Lady Shivara Sharpblade, de Trebuck, indo à guerra.

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Após os acontecimentos daquele dia, passei muito tempo em terapia psicológica. E os altos preços das consultas me fizeram entender o porquê da profissão ser tão comum entre os nativos do reinos de Ahlen, aqueles ladrões!


Autor: Rômulo “Kainof” Ohlweiler 22 de abr de 2008

Um comentário:

  1. É bem interessante ficar imaginando a peça, com os personagens e as falas.

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